Aguardava pacientemente
a chegada do ônibus.
Era um dia escaldante,
suava por todos os poros possíveis, e por aqueles apenas imagináveis. Sabia que
pelo horário, o ônibus tal qual um navio negreiro da época colonial, estaria
transbordando de humanidade, de calor, de odores acres, de apertos e desconfortos.
Sabia que aquela nau
sacolejante e intempestiva, avançaria por sobre o mar de automóveis, onde
humanos abençoados pelo ar condicionado e pelo espaço sagrado da privacidade
permitiam um ir e vir tão diferente do que aqueles porões sobre asfalto do transporte
coletivo da cidade projetada para o transporte dos nababos.
Sabia que o motorista
entre estafado, irritado e horrorizado, não percebia que os avanços aos trancos
e os estancamentos súbitos, produziam um não sei que de nauseabundo resultado
sobre a existência de cada ocupante daquela nau de novos escravos do tempo, do
trabalho e do sofrimento.
Aguardava o ônibus, que
sabia, não tinha ar condicionado, não tinha qualquer item de conforto que o
fizesse parecido com um transporte de qualidade, mas que era a própria afirmação
das diferenças de classe, das diferenças de crença, das diferenças de berço.
Sim, o transporte coletivo era a afirmação, era a denúncia de uma sociedade que
se regozija da desigualdade, que sente volúpia ao permitir SUVs que, ocupadas
por um único cidadão e toda escurecida por filmes, tornam-se esquifes
ambulantes que como icebergs, boiam no mar de veículos estúpidos, fazendo as
naus negreiras ziguezaguear perigosamente por vias inadaptadas ao fluxo e ao
tamanho dos elementos que a preenchem.
Aguardava o ônibus
sabendo que a única preocupação das autoridades era fazer teatros de fancaria,
que chamavam de licitação, para escolher os mesmos escroques como respeitáveis empresários
do transporte coletivo, camuflagem ideal para o transporte dos escravos do
trabalho e do tempo no século XXI, obedientes ao senhor de escravos Consumo.
Descobriu, num lapso,
que perdia sua existência ali, aguardando o ônibus, como os escravos nos
mercados do pelourinho, descobriu ali, solitário, suando, estafado, entre
tantos outros humanos bestificados, que sua existência apenas legitimava os
carros de luxo que desfilavam sobre seu olhar, para levar os senhores para o
campo onde o chicote da produção e da eficiência o açoitaria, até que sua carne
exposta, dessangrada, fosse dada aos abutres do Estado, com suas pensões de
miséria.
Aguardava o ônibus e
descobriu, tão de repente, quanto o mundo se fez no Big Bang, que tudo isso não
fazia sentido. Desidratou-se tanto, derreteu-se e restou como uma mancha
ignorada no asfalto, ao lado do bueiro entupido, negado a ele o destino
de alcançar o mar, porque entupida as galerias pluviais com os restos da
sociedade que o transportara tanto tempo, nos novos-velhos navios negreiros.