Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Parada de ônibus





Aguardava pacientemente a chegada do ônibus.
Era um dia escaldante, suava por todos os poros possíveis, e por aqueles apenas imagináveis. Sabia que pelo horário, o ônibus tal qual um navio negreiro da época colonial, estaria transbordando de humanidade, de calor, de odores acres, de apertos e desconfortos.
Sabia que aquela nau sacolejante e intempestiva, avançaria por sobre o mar de automóveis, onde humanos abençoados pelo ar condicionado e pelo espaço sagrado da privacidade permitiam um ir e vir tão diferente do que aqueles porões sobre asfalto do transporte coletivo da cidade projetada para o transporte dos nababos.
Sabia que o motorista entre estafado, irritado e horrorizado, não percebia que os avanços aos trancos e os estancamentos súbitos, produziam um não sei que de nauseabundo resultado sobre a existência de cada ocupante daquela nau de novos escravos do tempo, do trabalho e do sofrimento.
Aguardava o ônibus, que sabia, não tinha ar condicionado, não tinha qualquer item de conforto que o fizesse parecido com um transporte de qualidade, mas que era a própria afirmação das diferenças de classe, das diferenças de crença, das diferenças de berço. Sim, o transporte coletivo era a afirmação, era a denúncia de uma sociedade que se regozija da desigualdade, que sente volúpia ao permitir SUVs que, ocupadas por um único cidadão e toda escurecida por filmes, tornam-se esquifes ambulantes que como icebergs, boiam no mar de veículos estúpidos, fazendo as naus negreiras ziguezaguear perigosamente por vias inadaptadas ao fluxo e ao tamanho dos elementos que a preenchem.
Aguardava o ônibus sabendo que a única preocupação das autoridades era fazer teatros de fancaria, que chamavam de licitação, para escolher os mesmos escroques como respeitáveis empresários do transporte coletivo, camuflagem ideal para o transporte dos escravos do trabalho e do tempo no século XXI, obedientes ao senhor de escravos Consumo.
Descobriu, num lapso, que perdia sua existência ali, aguardando o ônibus, como os escravos nos mercados do pelourinho, descobriu ali, solitário, suando, estafado, entre tantos outros humanos bestificados, que sua existência apenas legitimava os carros de luxo que desfilavam sobre seu olhar, para levar os senhores para o campo onde o chicote da produção e da eficiência o açoitaria, até que sua carne exposta, dessangrada, fosse dada aos abutres do Estado, com suas pensões de miséria.
Aguardava o ônibus e descobriu, tão de repente, quanto o mundo se fez no Big Bang, que tudo isso não fazia sentido. Desidratou-se tanto, derreteu-se e restou como uma mancha ignorada no asfalto, ao lado do bueiro entupido, negado a ele o destino de alcançar o mar, porque entupida as galerias pluviais com os restos da sociedade que o transportara tanto tempo, nos novos-velhos navios negreiros.

2 comentários:

  1. Análise trágico-poética da pseudo-metrópole que se auto descreve modelo do futuro "modus vivendi" da suposta civilização. Assim os bi-articulados azuis, rosas, rubros e argênteos são transportadores de arenques tupiniquins.

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    1. Kátia, há uma veia poética no comentário que fazes, sim, nossos ônibus, coletivos que transportam a desesperança, são verdes, amarelos,vermelhos, prateados e brancos, bem como de muitas outras cores do arco-íris, apenas para dizer que buscamos o tesouro que se esconde no seu final, o tesouro que se nos é negado, mas que se constitui apenas de dignidade! Que seja sempre benvindo comentários poéticos!

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