Nossas vidas são
curtas! Mas, são longas! Alguns querem viver eternamente, outros querem que ela
seja breve, às vezes tão breve, que tomam para si o agir para abreviá-la em
definitivo. Suspeito que haja um demiurgo pouco amigável, ou melhor, com pouco
humor a tecer nossos destinos.
Passei a refletir
sobre o tempo, ou melhor, sobre o seu desperdício, desde um momento, que não
saberia precisar, mas que compreendi era fugaz demais para perpetuar-se, longo
demais para ser insensatamente revivido.
Enfim, reflito
sobre o tempo, a tanto tempo, que consome o tempo que tenho para viver meu
tempo. Talvez seja assim, uma maldição de um demiurgo mal humorado! Dá-nos a
consciência de existir apenas e tão somente para nos torturar com a certeza de
que mal começamos, estamos a acabar!
De toda forma, a
memória é uma aliada para resgatar o tempo que vivemos com todos os que amamos,
com todos os que desejamos ter amado mais, com todos os que não gostaríamos de
ter feito desembarcar de nossas vidas. A memória, como um baú de recordações,
onde atiramos fragmentos variados de nós mesmos, não é algo que reste
organizado, catalogado ou classificado, porque na ânsia de viver, atiramos
tudo, o que queremos e o que não queremos naquele baú, pleno de pedaços
fragmentários de sentimentos, emoções vividas.
Vasculho então
ávido o baú, não sem antes, ter tido muito trabalho com as trancas e ferrolhos
que apliquei sobre a tampa, para esconder minhas responsabilidades sobre muitos
dos objetos quebrados, que não soube preservar. Um trabalho redobrado na medida
em que, cada cadeado, cada ferrolho, trazia a marca de alguém magoado,
entristecido, embrutecido, por minha estupidez, minha fragilidade, minha falta
de doação.
Mas apesar do
trabalho, e de ter ferido as mãos, vasculho então o baú. Vou retirando pedaços
de cadáveres, alguns insepultos, outros decompostos, mãos, pés, rostos,
cabelos, torsos, pernas e imagens, misturadas, confundidas, ladeiras de Ouro
Preto com escadas da Torre Eiffel, jardins de Lisboa com vinhedos da
Califórnia, Sol que nasce no mar e se põe no mar, porque misturados os oceanos,
misturados os continentes, misturados os tempos, misturadas as lembranças.
Como pude deixar
que todo o tempo, pedaços tão díspares de mim, fossem sendo atirados no baú com
um total desassossego? Como permiti que cadáveres restassem insepultos tanto
tempo e que lugares e tempos se confundissem, impedindo que cada tempo fosse
vivido intensamente e tão somente nele mesmo?
Sim, nossas vidas
são tão curtas, absurdamente curtas, apesar de vivermos o dobro de nossos
ancestrais. Mas o curioso, é que apesar de não vivermos tão somente 40 anos,
mas agora 80, ou quase isso, a vida ainda é mais curta do que foi para eles. A
vida é mais cruel agora do que foi, é mais cheia de memórias, todas elas
estropiadas, abandonadas, atiradas sem razão dentro de um baú de memórias que
nos aflige.
Carregamos o baú e
vamos aplicando-lhe trancas, ferrolhos e cadeados, com os restos dos seres
amados. Atiramos a chave bem longe nas profundezas de nossas sombras,
escondemo-nos de cada resto mortal que deixamos no caminho da vida. Mas
carregamos o baú e ele denuncia o tempo vivido, ele clama por uma organização
necessária para dar sentido à existência, sentido que quando começamos a
buscar, já é muito tarde, como se o tempo para viver já tivesse acabado, como
se nosso corpo anunciasse um ocaso próximo, de tudo o que foi desejado, mas não
foi vivido.
Então tenho
certeza, o demiurgo que nos criou ri, ri a velas despregadas, singra oceanos de
riso, de nossa insignificância, de nossa pequenez, de nossa contingência.
Dá-nos consciência da importância da vida, do amor, da amizade, do carinho,
quando já é tarde para perceber que abundaram em nossas vidas e o que fizemos
foi perdê-los.
Tenho certeza, este
demiurgo malévolo, senhor do tempo, tem o prazer imensurável de nos ver
lamentar a vida curta que temos, mesmo que tenhamos sempre a desperdiçado
pensando no passado ou projetando o futuro. Que nossa estultez seja a chave
para entender porque abandonamos aqueles que amamos, o por que não fazemos amor
todos os dias, não beijamos todos os dias, não nos entregamos todos os dias, já
que ontem não pode ser mais resgatado e amanhã..., o amanhã não existe é mera
possibilidade.
Certeza. Sim,
tantas certezas, mas nenhuma que diminua minha aflição com a pequenez do tempo.
De cada tempo, vivido como ontem, ou como amanhã, sem se concentrar nos amores
para viver hoje.
Certeza. Tão mais
forte, quando vemos alguém que por amar, por mais de 60 anos, morre porque o
outro deixou, agora, a tão pouco tempo, este grão de areia miserável, num
Universo tão grande e inconcebível. Um amor, que levou a chave do baú das
lembranças vividas, dos momentos compartidos, que tinha todas as chaves de
todas as trancas.
Enfim, a morte não
é o fim de uma vida, mas o termo do tempo, o definitivo esconder de um baú de
memórias, desorganizadas, lamentadas, abandonadas, mas que só fazem sentido
pela intensidade do que foi vivido!
Meu corpo arrasta
meu baú, cada vez mais pesado, e não sei se terei tempo para organizar cada
pedaço e lasca, nem se poderei enterrar os cadáveres com todos os rituais e
exéquias que todos e cada um merecem, mas acredito que é o tempo de por em
ordem, porque as pernas cansam, os braços doem, perco forças, enxergo mal e sei
que o tempo que me resta é apenas para satisfazer a infinita sede de riso do
demiurgo que contempla o tempo, enquanto eu, afundo no mar de lamentos.
Dói-me a alma.
Desfaleço! Permanece o baú, com mais algumas trancas e outras tantas
lembranças! Escoa-se o tempo mas, que não seja breve, que não seja pequena a
clepsidra.