Certo dia caminhava
cabisbaixo pela calçada, envolto nas milhares de desrazões que governam o
mundo, que governam nossas vidas! O olhar, mirando os pés, perdiam-se em não
sei quantas conjecturas sobre a necessidade de caminhar!
Os pensamentos pareciam
difíceis, pesados, brumosos, escurecidos, estapafúrdios. Como se os pensamentos
pudessem ser assim qualificados, ou como se pudessem ser algo diferente do que
todas estas formas de sentir.
Enfim, caminhava!
Surpreendia-se com os tropicões, com as moedas, com os restos de comida, de
roupas, de cartas, de bilhetes, de cupons, de cigarros, de bijuterias, como uma
imensidade de migalhas que apontavam a insignificância das vidas que passam,
sem nem mesmo refletir sobre seus caminhos, sobre seus passos, sobre seus
objetivos.
Mas, ele caminhava,
e permanecia de cabeça baixa, porque cruzar olhares com desconhecidos que não
se afetavam com seu destino, com a sorte que se negava a sorrir em seus dias,
era como sentir plenamente sua desdita, sua inadequação, sua não existência.
E, evitando os
olhares, seguia em frente, como poderia estar seguindo para um lado, ou para
outro, ou para trás, porque enfim, poucos sabemos para onde vamos? porque
vamos? nem para quê?
Ocultando-se o melhor
que pode de suas dores e de suas insuficiências, começou a seguir o caminho que
se descortinava com pequenos restos de folhas impressas, de um livro sem capa,
sem autor, sem história. Agachou-se e apanhou um pequeno fragmento, parou, de
súbito, e em êxtase, naquele fragmento, havia um número de página. 34.
Não havia dúvidas,
era a migalha de um livro, um pedaço de página, de um lado, o número 34, do outro, 35. Estava escrito: ...”ia; aproveita o momento presente, espreme- (...)
de uvas e deixa o bagaço para os porcos –“, do outro lado: “distinção de ética.
Não tem nenhu.. (...) Se o acusassem de ter feito trapaç...”.
Era um pequeno
fragmento, uma história inacabada. Mas ali, parado na rua, pensando sobre a
falta de sentido de sua existência, refletiu sobre o fragmento. Sim, ele era
como aquele pedaço de página. Nascera para fazer parte de um livro maior, para
ser lido, compreendido, guardado, era algo inteiro, que depositava muito mais
do que as palavras, pois quando juntas, permitiam as mais variadas leituras
possíveis. Mas ele, como o livro, foi sendo destruído, tornado aos pedaços,
deixado nas calçadas como restos de algo que perdeu sua completude, e parecia
agora, sequer fazer sentido.
Mas então, que se
aproveite o momento, que se espremam as uvas e se faça o vinho, e o bagaço, que
se lancem aos porcos. Mas então, seria ele um bagaço, porque sentia-se atirado
aos porcos, abandonado, sem importância. Sim, fora espremido, e tudo que levava
na alma, fora-lhe tirado, subtraído, até que dele e de seus pensamentos só
restasse o bagaço.
Refletiu por um momento
sobre a página 34 e lançou-se à exegese da pequena migalha, na página 35. Distinção
ética!? Sim, quantas vezes na vida propôs-se fazer a distinção entre coisas que
era certo se fazer e o que não era! Mas realmente nunca poderiam acusá-lo de
ter feito qualquer trapaça. Tinha agido sempre de forma a que, se merecesse o
inferno, tal não seria porque agira de forma desleal. Mas agora, todo aquele
pensar e agir o tinham conduzido àquele momento de reflexão na calçada, com um
pedaço de papel, ou melhor, o pedaço de uma página, de um livro, que não sabia
qual era, que não sabia por quem escrito, mas que o descrevia com tal
profundidade, que preferia ser aquele pedaço sujo de papel sobre a calçada a
ser aquele amontoado de pensamentos em conflito que estancara seu destino, por
caminhos que desconhecia.
Ficara ali, estupidificado
com o pedaço de folha nas mãos, identificado com cada palavra, com cada
expressão das páginas 34 e 35 de um livro que não mais estava inteiro, como ele
também não estava.
Ficara ali, tão
sozinho quanto o fragmento abandonado para ser destruído sob os calcanhares de
seres que apenas compõe o cenário de um mundo ensandecido e triste, alheios uns
aos outros, alienados de seus próprios destinos, incapazes de achar a folha
onde o pedaço seria parte, onde a completude daria sentido, onde o texto escreveria
uma forma de ler a vida, que faria sentido!
Diz-se que ao se
passar naquela calçada, muitos anos depois deste fato, todos os dias, a mesma
migalha, está na calçada, que todos os dias ela se eleva com uma brisa ao meio
dia e que flana à altura dos olhos. Que se revira de um lado e de outro.
Que as pessoas não
vêm mais aquele que caminhava cabisbaixo, e que estancava ao encontrar o
pequeno pedaço de folha, mas agora, ao ver todos os dias este mesmo pedaço
elevar-se e ressurgir, começam a acreditar que aquele homem, invisível, como a
grande maioria de nós, permanece ali, cabisbaixo, sem seguir caminho algum,
refletindo e refletindo, cada dia, sobre nossas vidas, sobre o vinho, bom ou
mau, que nos extraem, e sobre os bagaços que nos tornamos, e então atirados aos
porcos!
Os passantes
começam a sentir medo de passar por aquele lugar, porque faz com que reflitam
sobre seu comportamento, sobre a ética de suas relações, sobre a lealdade em
suas amizades, e amedrontam-se ao perceber que era melhor estancar a marcha
ali, porque de fato, poucos, talvez nenhum, saibam de forma concreta, para onde
estão indo!
Ele, cabisbaixo e invisível,
permanece naquele trecho da calçada, por um tempo que nem mesmo ele é capaz de
dizer, mas, sempre com a pequena migalha na mão, lendo-a de um lado e de outro,
como resumo infinito de sua existência, numa busca incansável de dar sentido,
sem deixar de existir!
Parabéns pelo belo texto.
ResponderExcluir