Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Urgências






Uma réstia de sol entrava pela janela e os raios iluminavam as partículas de pó suspensas no ar. Era uma manhã fria de primavera. Os pássaros gorjeavam no jardim e anunciavam os rituais da escolha que fizera, viver mais um dia!
Os pássaros, pensou! Amava o canto dos pássaros e no seu jardim havia muitos deles, de muitas espécies, porque havia árvores frutíferas e porque ele sempre colocava alimento para as aves sobre os bancos do jardim.
Pensava com prazer na presença daqueles animais plumados. Nunca tivera qualquer gaiola, nunca concebera amar pássaros e engaiolá-los, e o que lhe dava inconfundível satisfação, era saber que lá estavam porque sua casa era como um santuário onde não havia gaiolas, onde o que tinha asas, podia voltar e partir conforme as pulsões de seus desejos.
Mas, estava em pé, um novo dia começava, e andar por entre livros, revistas, anotações, todos espalhados pelos cômodos, sobre e sob os móveis, fazia o mundo reconhecível. Resistia ao máximo em aproximar-se dos gadgets, não queria saber o que estava acontecendo do outro lado do mundo, as misérias de um outro continente. Esta escolha tinha-a feito a muito tempo, porque ouvia as pessoas falar das mortes na Síria, no Afeganistão, na Turquia, mas, não as via preocupadas com a morte que se anunciava em sua própria cidade.
Sentia-se velho, não pela quantidade de anos que pudesse ter, mas pela velocidade e quantidade de seus pensamentos. Por causa de todas as coisas que lhe passavam na alma sem que conseguisse responder satisfatoriamente a cada uma das preocupações que o toldavam.
Arrastou-se, caminhando sem esquecer de levantar os pés, porque arrastá-los trazia uma sensação de ruína, uma expressão de desdém para consigo mesmo. Não, não arrastaria os pés, não reproduziria o som irritante do chinelo escarificando o solo e marcando a incapacidade motora de escolher seu próprio destino.
Sentiu então uma urgência. Melhor, duas urgências. Uma dor no estômago, que anunciava fome! Uma dor no baixo ventre, que anunciava a necessidade de esvaziar a bexiga.
Cruel dúvida no corredor interno da casa e de sua vida, qual satisfazer primeiro?

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