Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Recomeçar




Recompôs-se e num átimo levantou-se, espreguiçou-se e sentiu cada músculo retesar-se, fechou os olhos e sentiu uma vertigem, uma agradável vertigem que quase o fez desabar sob o solo. Uma sensação agradável que já experimentara um sem número de vezes mas, que era sentida como única a cada vez.
Abriu os olhos, prolongou por mais tempo que pode aquela sensação de desequilíbrio, de zonzeira, que precedia a escolha de manter-se mais um dia vivo. Sim, porque a cada dia a escolha de existir se fazia mais exigente, mais sentida, mais compreendida em sua plenitude.
Cada dia que acordamos temos sempre a escolha de viver ou de morrer. Porque para morrer basta que tenhamos nascido vivos. Assim, todos os dias uma escolha se impõe, cada dia com suas perdas é uma vitória da vida sobre a morte, consciente e corajosa, apesar de o medo ser um componente importante e relevante da escolha.
Olhou para a sala ao seu redor, milhares de livros, como amigos interessados, silenciosos, como se estivessem com seus olhos arregalados, contemplando cada movimento, cada pensamento. De suas lombadas pulsavam e reverberavam um algaravia de vozes onde os nomes de uma humanidade conhecida se reuniam para explicar tudo que não tem qualquer sentido.

O tempo como que parado, desejado como eterno, fazia uma pausa para que ele, então desperto, então vivo com suas dores, fizesse a escolha, desse o primeiro passo, rompesse o torpor do abandono e enfrentasse mais uma jornada para lugar algum, reconstruindo memórias e dando algum ou qualquer sentido ao existir que se impunha na extensão e na medida da escolha feita!

Visionáticos




Somos todos grandes planejadores do passado,
Estamos todos avançando no tempo,
Reescrevendo nossas memórias,
Dando sentido e unidade a uma pluralidade de vidas!

Somos os visionários de um passado vivido e sentido,
Explicado pelas nossas escolhas, olhado de soslaio pelo retrovisor,
Um retrovisor que permite acreditar que caminhamos,
Para o futuro, mas sempre emoldurados pelo passado!

Somos visionáticos, visionários lunáticos,
Acreditamos que contamos fatos e verdades,
Mas meramente reproduzimos conteúdos de memórias
Carregados, prenhes de afeto, plenos de sentimento!

Somos uma reunião heterogênea do que nos foi contado,
Do que acreditamos que nos aconteceu,
Do que cremos que vivemos como fatos concretos,
Quando na realidade somos apenas discurso!

Um discurso construído em cada momento,
Reelaborado para o nosso interlocutor,
Reescrito a cada vez que contamos nossa história,
Uma história tão particular, porque única.

Nossas vidas são como grandes florestas,
Cobertas de desertos de areia,
Açoitadas por monções, devastadoras,
Que ao final deixam uma superfície lunar!

Crateras, erosões, vastidões de perdas,
Reescritas para colorir o que já resta descolorido,
Parar fazer brilhar o que tornou-se opaco,
Para dar sentido ao sem sentido algum!


Sim, criadores e inventores do passado!

terça-feira, 8 de agosto de 2017

O Desejado




Sim, em cada vida há um desejado,
Ou muitos desejados,
Dependendo das vidas,
E tantas histórias, que temos e vivemos!

Mas, agora, há o desejado,
Ou a desejada,
Por que ainda não sei,
Se vem para governar-me como...
Princesa ou Príncipe!

Se vier Rafael,
Será bem-vindo,
Por que é Deus que cura,
Todas as feridas,
Todas as mágoas,
Preenche todos os amores,
Preenche todas as faltas,
Encanta como anjo,
Povoa os sonhos, para encantar,
Cada momento de ternura,
Que já existiu, que existirá,
Com os duendes que cassamos e cassaremos!

Se vier Ricarda,
Será muito bem-vinda,
Porque é princesa que pela força,
Dobra destinos, une esperanças,
Supera abandonos,
Solda feridas, povoa expectativas,
Traz com seus cachos,
A lembrança de outros,
Que dormiam sempre que assistiam,
Mesmo que apenas reclames.

Seja Rafael, seja Ricarda,
Já conseguiste mudar o curso,
Da minha vida,
Da minha história!
Eu ansioso e inútil,
Apenas espero o momento,
De respirar o ar,
O mesmo ar que haverás,
Num dado momento,
De um futuro próximo,
Respirar pela primeira vez!

Seja Rafael, seja Ricarda...
Habeo geniti nepotis!

Tenho um neto! Tenho dito!




Noite Longa




Fechara os olhos a tanto tempo, e a fadiga tomara-lhe o corpo, tão intensa, deixando-o alheio de si mesmo ao longo de tantas memórias e sofrimentos, que silente ficou, entorpecido e ausente!
Não sabia mais quanto tempo passara e se, o silêncio que lhe ensurdecia, era o anúncio da solidão ou a denúncia da surdez! Entre a incredulidade de aceitar a solidão ou a surdez, abriu lentamente os olhos, descrente de que encontraria, para além das pálpebras um mundo reconhecível.
Mas, foi isso que lhe ocorreu. Continuava condenado a existir, ali, sentado sobre a poltrona, no canto daquela sala intemporal. Uma réstia de sol invadia o recinto, e nela flutuavam as partículas de pó denunciadoras da vastidão do tempo passado, do acúmulo de abandono, de apatia, de abulia, de solidão.
Fez um tímido esforço para levantar-se, mas o que conseguiu foi sentir cada músculo, cada osso, cada parte de um corpo que imóvel, quase encarquilhou-se. Pensou que se levantasse de súbito, superaria a dor e a inércia, mas a dor queimante no pescoço, e outra rasgada nos braços, fizeram sentir como realidade as ferroadas do joelho.
Então percebeu que aquelas dores eram suas lembranças, marcadas em cada parte do seu corpo, pelas ausências e faltas de seus amores, passados e não tão presentes! Não se queixava, porque não havia espaço para se queixar.
Um caroço obstruiu-lhe a glote, caiu-lhe sobre a cabeça uma sensação gelada, uma vontade de chorar.

Mais uma vez, restou-lhe uma lágrima e a solidão de estar. Existir para sentir a falta!

Inusitado




Tinha um frango no meio do caminho,
A aranha que levava consigo quatro pinguins,
Numa van, que conduzia para a praia,
Com o susto, quase atropelou o frango!

Assustado, espavorido,
Grunhiu o frango, como um porco,
Girou sobre si mesmo,
Pronto, atirou-se à margem!

Mas a margem do papel,
Posto que rosa,
Ficou rubra, e como o meu coração,
Passou a pulsar apaixonado!

Mas fosse um coração apaixonado,
Fosse um coração aguilhoado,
Pelo abandono e a rejeição,
Não suportou o inusitado.

Do frango brotou uma esperança,
Na forma de uma libélula,
Toda rosa e toda prosa,
Que cantava, como a cotovia!

Sabia apenas um entre trecho,
De uma sinfonia tocada por único instrumento,
Que sabia gritar, arfar, arranhar o ar,
Repetindo incansavelmente o nome teu!

Mas ao bater as asas,
Disseram-lhe que causava tufões,
Foi buscar nas folhas de acácia,
A violência das convulsões!

Achou perdido na página marcada,
A pétala de uma rosa já ressecada,
Que marcava, como big bang,
O surgimento do universo que te cercava.

E o universo se fez pérola,
E a pérola foi reunida num colar,
O colar adornou teu pescoço,
Para acorrentar em definitivo...


Minha alma!

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O Sol




O sol é um astro cruel,
Cada dia, acende os vivos,
E numa sucessão incansável,
Apaga os mortos.

Cada passagem no firmamento,
Torna mais distante a sensação,
Torna mais difícil a apreensão,
De cada manifestação de desejo.

Inexorável, marca a passagem,
Da lembrança para o esquecimento,
Quando se põe, abre um espaço à memória,
E nos sonhos, revive o ausente.

Uma pessoa, pode ser várias,
Tantas, quantas podem ser,
Cada estar e sentir em nossas vidas,

E o sol? Reduz tudo a um lamento! 

Memórias




O tempo é inexorável,
Condena-nos a perder memórias,
E perder memórias,
Não é como perder um olho,
Ou como perder um dedo,
Ou como perder qualquer outro pedaço de mim,
Perder memórias, é constituir-se outro,
É fazer-se outro e estranho a si mesmo.
Quando penso no teu existir,
Quando penso no vazio que deixaste,
Quando sinto o vácuo que se faz na memória,
Percebo que contigo parte um pedaço de mim,
E agora, que sou outro,
Percebo-me tão menor,
Tão insuficiente,
E o tempo, que me rouba tuas memórias,
Faz-me um estranho,
Que olha um imenso vazio,

No fundo dos olhos que não mais encontro.