Nunca tivera medo da
morte. Para ele esta era uma etapa necessária de um fenômeno natural e
contingente que era estar vivo.
Passara os anos sem
que o dia de amanhã fosse uma certeza, porque mera probabilidade. Ouvira muitas
coisas, lera muitas outras, todas tentando glamourizar o inafastável declínio
que sobrevém ao passar dos anos.
Percebia o quanto
tais construções tinham como fundamento erros de percepção e, mais que isso,
uma busca tresloucada de fazer com que a decadência física fosse superada por
discursos superficiais e de autoajuda, tentando convencer-nos do inconfessável.
No entanto,
permanecia absolutamente sem medo da morte. Como Epicuro, acreditava que
enquanto estamos vivos a morte não existe, quando mortos, então já não
estaremos vivos para percebê-la ou senti-la.
Mas com o passar do
tempo e o estreitamento do horizonte, foi-lhe surgindo uma urgência. Cada dia
mais aguda, cada dia mais premente. Seus desejos continuavam tão intensos e
determinantes como sempre o tinham sido, mas agora, parecia-lhe que o dia de
amanhã se mostrava uma probabilidade cada dia mais penosa.
A medicina, cada dia
mais desumana, enxergava o humano como o destinatário de uma ciência de
prolongação da vida a qualquer custo. Os medicamentos se amontoavam sobre a
mesa de cabeceira. O celular mais parecia um relógio cuco, anunciando a cada
passo um “remedinho” que deveria ser tomado para cada um dos achaques que lhe
toldavam o corpo, pelo simples motivo de estar vivo para além do tempo.
Cada vez que
encontrava um médico, este não o enxergava mais como um inteiro, um humano, um
animal assustado com sua própria decadência, percebendo o esgotamento de suas
possibilidades, mas animado de um vivo espírito de desejo e conquista.
Cada um deles
descrevia um novo problema, alguns deles que houvera desde o nascimento, mas
que só agora apresentava suas nefastas consequências. Dormir restou-lhe quase
impossível, então, hipnóticos. As dores na coluna moldavam-lhe o ânimo, então,
anti-inflamatórios e miorrelaxantes. Suas células tornaram-se resistentes à
glicose, então, hipoglicemiantes.
Apenas não lhes
ocorria que ali estava um homem que tinha urgências, que todas se relacionavam
com o existir. Não o quanto existir, mas o como existir. Queria apenas ser
ouvido, que fosse digno de um tempo para ser escutado, que suas angústias
pudessem ser sentidas, compartilhadas, como se a humanidade de ambos fosse
percebida e sentida.
Assim, o tempo foi
passando, sua decadência física funcionando como uma lupa que fazia perceber e
amplificar a decadência moral da sociedade de consumo. Foi-lhe tornando claro
que a tecnologia não estava mais a serviço do homem, mas a serviço de si mesma.
Que seus desejos já não mais eram importantes. Se o eram, apenas na medida da
reprodução da ensandecida ciranda de consumo.
Estava agora na
frente da tela de seu computador. O prompt
piscando na tela branca anunciava o desejo, a premência de dizer o que sentia.
Da angústia do tempo.
Não importava o
quanto ainda havia por acontecer, seus desejos persistiam, entre os quais, de
realizar plenamente sua humanidade, que se encontrara subitamente na leveza do
poeta.
Na poesia que
descrevia sua dor e sua angústia, no medo que sentia das agulhas, nascia a
possibilidade, de para além do corpo, dos anos, dos sofrimentos, precisar
apenas de sua memória e de sua vontade, para viver em cada humano que sentisse
a incerteza do amanhã.
A poesia que tantas
vezes lida, muitas vezes incompreendida, adornava cada canto de sua existência,
que curava sua alma, e que para tanto precisava apenas de papel e impressora.
Compreendera então
que os médicos de sua alma, tinham sido os poetas que lhe aplicaram bálsamos
para enfrentar a precariedade e a tibieza, para vencer esta tão curta
existência.
Houvesse encontrado
tantos médicos poetas desde seu nascimento talvez não sentisse tantas dores, ou
talvez estas já o tivessem feito sucumbir, mas com certeza, ter-se-ia realizado
em versos, permaneceria infenso ao medo da morte e teria vivido suas urgências
como preâmbulo da eternidade dos versos que intuíra.
Aplacara-se a
ansiedade. Pôs-se a escrever, nem que fosse apenas um verso.
*Texto apresentado
para o Concurso SOBRAMES/AMP/CRM em homenagem ao dia do Médico em 2017.
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