Estava sentado na
poltrona a um canto da biblioteca. Não era vasta, muito menos rica, mas era a
sua biblioteca. Naquele espaço sentia-se soberano do tempo, senhor de seus
cachorros.
Encontrara um amigo
de longa data, que seduzido pelas doutrinas espíritas, chegara-lhe entusiasmado
para falar de experiências de quase morte. Este acreditava que essas de fato
tratavam de pessoas revividas.
Trouxera-lhe há muito
um livro, que ele se forçara a ler, sobre um médico americano que após uma
experiência desta natureza, passara a defender “cientificamente” a existência
da vida após a morte. O encontro fizera relembrar a leitura e meditar sobre a
necessidade de acreditar que assalta com violência proporcional à idade cada
humano que conhecera.
Ficou meditando.
Olhou para a sua cachorrinha e lembrou o quanto lhe apavorava a simples ideia
de que ela deixaria de existir, provavelmente muito antes dele. Apertou-lhe o
peito a dor indizível da lembrança dos que amou e tinham partido, eufemismo
para aqueles que apenas morreram.
De onde vinha a
necessidade que constrangia o humano a acreditar numa vida futura? Para muitos,
qualquer explicação para fundamentar a moral exige necessariamente a existência
futura, onde cada um deveria ser julgado de acordo com os seus méritos.
Neste sentido,
ponderou que então teríamos de crer necessariamente num Deus pessoal que
tivesse um conjunto de valores com os quais cada um de nós pudesse ser
confrontado e então discernir os que mereciam o paraíso ou o inferno.
No entanto, tanto o
agnosticismo, quanto o ateísmo faziam cada vez mais adeptos, sem que se arrefecera
as expectativas de vida futura.
Ora, sempre concebera
que de fato não há uma separação entre carne e espírito, e no cristianismo tal
dicotomia não existe, apesar de Agostinho e seu neoplatonismo. Para o Messias
da Galileia ressuscitamos em carne e osso e com certeza, ele estava coberto de
razão, porque reviver em qualquer outro corpo ou condição, redundaria que nossa
identidade já não seria a mesma.
Faria sentido pensar
numa vida após a morte com as experiências de quase morte apresentadas pelos
estudiosos do tema? O absurdo, compreendeu, estava em que os homens e mulheres
quanto mais velhos, mais ansiosos pela existência de uma vida após a morte. Mas
proporcionalmente mais desesperados por qualquer migalha de vida que se lhes
possa dar.
Era uma corrida
insensata. Querem crer que sobreviverão, mas querem permanecer o tempo mais
longo possível, mesmo carregando tantas dores, limitações e desapegos.
Suspirou. Fechou os
olhos. Uma certeza inundou-lhe. Apenas os que temem morrer precisam de provas
de que há vida após a morte.
A vida realmente não
se importa com o vivo. Com o que façamos ou deixamos de fazer enquanto vivos. O
que nos torna reféns da morte não é nossa condição de estarmos vivos, mas a de
termos consciência de nossa contingência e precariedade.
Refletiu que a
consciência que se dá a cada vez que somos lambidos pelo cachorro, que beijamos
o amado, que sorrimos com a gravidez de uma filha, que nos preocupamos com o
destino de cada outro que existe é que nos faz sabedores da morte.
Que persistir, para
além da morte, é memória reescrita na história de cada um que guarda com
carinho, com zelo e com constância a existência de um outro que já se
extinguiu, mas que permanece no mundo como um feito, como um realizado, que
mudou tudo a partir do momento em que viveu.
Estava certo de que cada
vida é como uma poesia. Algumas mais belas, outras muito ruins, todas elas
merecedoras de serem preservadas para sempre. Não por suas qualidades
intrínsecas, não por sua beleza literária, mas porque para alguém, em algum
lugar e num dado momento, aquela poesia poderá fazer e dizer tudo que fará
diferença. Então, teremos sobrevivido para além da morte.
Levantou-se e agarrou
sua pequena cachorrinha, deixou-a beijar-lhe, ou se preferirem lamber-lhe,
olhou bem no fundo de seus olhos, e então encontrou a eternidade. Uma
eternidade de devoção, que pode durar apenas o tempo de um olhar, que pode
durar o tempo que persistir uma lambida. Que perdurará enquanto faça sentido
para um outro que tiver a disposição de ler e sentir aquilo que lhe ia no peito.
*Texto apresentado
para o Concurso SOBRAMES/AMP/CRM em homenagem ao dia do Médico em 2017.
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