FERNANDA
TORRES
Bustos romanos seduzem pelos defeitos;
narigudos, papudos e olheirudos, se distanciam do ideal grego
Em "A Invenção do Humano",
Harold Bloom afirma que a consciência do homem moderno nasceu com Hamlet.
Shakespeare, afinal, seria o tronco, e todo o resto --Freud, Dostoiévski e
Guimarães Rosa--, seus galhos.
O crítico americano descreve o
dinamarquês como um homem contemporâneo preso em uma trama medieval. Os demais
personagens não seriam capazes de raciocinar como o jovem, o autor não lhes
dota do mesmo vocabulário. No choque, a razão do príncipe só se justifica
através da loucura.
Estive na Galeria Uffizi, em Florença,
no começo deste ano.
Lá, é possível acompanhar muitos desses
saltos evolutivos na história da criação.
Iniciei o périplo pelas pinturas
medievais. Sacras e bidimensionais, há pouco de humano nelas; são esquemáticas
como a corte do rei Claudio.
Giotto é quem dá o passo ao descolar as
figuras do fundo, dando-lhes profundidade no sentido amplo da palavra. A
perspectiva expande o sofrimento de Madonas, Moisés e Cristos crucificados por
bons séculos. Vale ressaltar a abnegação com que os mestres enfrentaram a
restrição temática.
Para quem segue pelos corredores da
galeria, a repetição de passagens bíblicas e divindades gregas cria um estado
de beleza e embriaguez interrompido pelos primeiros retratos realistas da
Renascença.
Na sala oito, os perfis da duquesa e do
duque de Urbino, pintados em 1472 por Piero della Francesca, marcam, na
impressionante coleção, o instante em que o homem se coloca em pé de igualdade
com os santos.
As salas seguintes exibem uma variedade
fascinante de rostos comuns, nobres, mas comuns, semelhantes à turistada. O
duque de Urbino é pai de Hamlet e foi criado mais de século antes dele.
A Cosac Naify acaba de lançar uma edição
preciosa do "Decameron". Cem anos antes de Piero della Francesca,
Bocaccio pedia desculpas ao Espírito Santo para falar dos dilemas mundanos de
quem sobreviveu ao século 14.
Entre 1300 e 1400, a Europa enfrentou a
Guerra dos Cem Anos, a corrupção desenfreada do clero e a peste negra, epidemia
que dizimou 75 milhões de pessoas, um terço da população europeia.
O cenário desolador flexibilizou a
moral. A noção de família e propriedade foi abalada, bem como a crença na
justiça divina. Os que sobraram se arrumaram como puderam, não como Deus
queria.
"Sabe-se que as coisas desse mundo
são todas transitórias e mortais, em si e fora de si cheias de tédio, de
angústias e de tormentas, passíveis de infinitos perigos; as quais nós, que
vivemos misturados a elas e somos parte delas, não poderíamos certamente
resistir nem evitar se a especial graça de Deus não nos emprestasse força e
sagacidade."
O discurso caberia na boca de Hamlet, ou
Macbeth, não fosse a conclusão tão reverente ao Altíssimo. Aparentemente
devoto, Boccaccio esclarece, logo na introdução, que sua novela não é
direcionada a Deus, mas ao juízo dos homens.
Ou à sua falta de juízo.
"Decameron" é um decálogo de desvios, um paraíso de putas ardilosas,
freiras volúveis, padres ladrões e bandidos de toda a espécie.
Os bustos de mármore do Império Romano
também seduzem por seus defeitos. Narigudos, papudos e olheirudos, se
distanciam do ideal olímpico dos gregos.
Admiro a Vênus e a Samotrácia tanto
quanto os Tintorettos da Scuola de San Rocco, mas as rugas romanas me provocam
o mesmo deleite dos rostos da Renascença, ou dos pecadores de Boccaccio; elas
revelam os anseios, a fragilidade, a torpeza e a mortalidade de gente como eu e
você.
Gosto também de admirar o modelo em cera
do casal de Australopithecus afarensis caminhando abraçado pela planície de
Laetoli, no Museu de História Natural de Nova York. O par de macacos bípedes
passeia enlaçado, enquanto admira a paisagem ancestral. São Adão e Eva
encarnados e não destoam dos "sapiens" apaixonados.
Difícil mesmo é reconhecer o que há de
humano nos games interativos que meu filho adolescente joga sem parar, on-line,
com os amigos virtuais.
Quando o vejo aos berros, imerso na
batalha imaginária, tenho dificuldade de acreditar que, algum dia, Hamlet fará
sentido para ele; e temo, como a mais retrógrada das santas inquisidoras, pelo
futuro da humanidade.
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