Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

domingo, 29 de dezembro de 2013

O livro



Entrou no casarão, que se achava esquecido no tempo, perdido no espaço de um imenso terreno, reminiscência da grandeza de uma família, outrora abastada, numa grande cidade daquele país tropical!
Entrou, as salas vazias, repletas apenas de lembranças esquecidas, de vidas vividas, mas ausentes.
No meio de uma sala uma pequena mesa de carvalho, bastante empoeirada, testemunha do tempo e do abandono daquela casa, atestado do olvido em que se encontrava um espaço outrora opulento, onde pulsava o desejo de erudição e encantamento!
A casa mais que centenária, albergava apenas aquela mesa, perdida no meio da sala, como obra de Duchamp, e sobre ela um livro, apenas um livro, igualmente empoeirado.
Não se podia afirmar que fora ali esquecido, sequer que fora ali abandonado. Em seu silêncio, parecia querer dizer mais do que simplesmente ser encarado como um livro esquecido sobre uma mesa, numa casa esquecida no tempo!
Por óbvio, era uma mensagem, mas deixada por quem? Com que sentido? Qual mensagem queria transmitir ao recém chegado?
A capa de couro, muito antiga, impressa com esmero, a lombada intacta, em que pese envelhecida, como atestado de sua dignidade. Trazia letras em ouro, que dificilmente podiam ser lidas, pela camada de pó que lhe retiravam a beleza dourada, que outrora ostentara.
Acerca-se  o visitante do livro, como se estivesse diante de um altar, busca com delicadeza afastar o pó que obnubila a leitura do título.
Lê Voltaire, e o título Le Siècle de Louis XIV. Uma edição de meados do século XVIII, antes da debacle do Reino de França, que sucumbiu à Fronda dos nobres, que inconsequentes levaram o seu mundo ao ocaso, ao permitir que a burguesia e os sans-culottes destruíssem o Antigo Regime.
O Voltaire que salta das páginas folheadas ao acaso, traz o brilho, o orgulho e a admiração por um Estado que liderava o processo civilizatório em todo o Ocidente. Que trouxe à humanidade o amor pelo luxo e pela beleza, o encantamento pela arte, pela música, pela beleza plástica dos espaços públicos de poder.
Luis XIV trouxe ao mundo o despertar do belo e do magnífico, e o livro nos contava isso, com toda a reverência que apenas o Rei pode despertar nos corações apaixonados pela beleza. 
Os diamantes, porcelanas, sedas e cristais, que povoam o imaginário de tudo que é belo e desejável até nossos dias, saltam das páginas, que relatam também as batalhas, as vitórias e derrotas da determinação de um homem e do povo que se lhe seguia.
O Reno como fronteira natural da França, a Flandres como extensão econômica do reino, necessária para controlar a indústria da lã em Albion.
Salta do livro um Rei vivo, que transpira humanidade em suas exaltações políticas, onde não é necessário saber se disse L’Etat c’est moi! Importa que tenha ou não dito, o Estado moderno nasceu em 1648, época em que Mazarin ainda governava em nome do Rei Sol, quando da vitória sobre a Fronda, e a construção de uma administração centralizada.
O livro mergulhava o visitante num tempo fora do tempo, ele podia sentir a beleza dos espelhos de Versailles, o encantamento das canções de Lully, a estonteante imersão nas peças de teatro encenadas para o Rei.
O livro ressuscitava os personagens históricos de um século XVII e XVIII que passara há muito tempo, apenas para os que não podem submergir nas páginas brilhantes dos homens que encerram seus tesouros nos livros!
Ficou ali parado, lendo e lendo, cada página do livro, cuja mensagem a ser decifrada, se alguma havia, era porque fora deixado sobre a mesa? Esquecido?
Passadas algumas horas, imerso nos sentimentos de fidelidade à monarquia, entretido com os arroubos retóricos de Voltaire, como filtros dos personagens que cercavam o Rei, passa a revoltar-se com a destruição ensandecida, levada a efeito pelo populacho de Paris, de forma sacrílega, contra o monarca ungido, pelo óleo da Santa Âmbula, na Catedral de Reims.
Repentinamente, acorda de seu torpor, ao ser agarrado violentamente por homens que falavam um francês incompreensível. Não conseguia acreditar, estava sendo arrastado para uma praça, havia algazarra, gritos e lamentos.
A casa se esfumaça às suas costas, mergulha no livro, só tendo tempo de ver à sua frente uma guilhotina, como que saída das páginas de outros livros, tal maldição indizível a perseguir os amantes da liberdade.
Sem compreender o que lhe sucedia, é-lhe tomado o livro das mãos, chamado monarquista, e de pronto, guilhotinado, na Place de la Batille em qualquer dia dos anos do Terror.

Passadas algumas horas, restaram a casa vazia, a mesa e o livro, Le Siécle de Louis XIV, pousado sobre ela, como alerta e mensagem do que não pode ser esquecido!

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