Entrou no casarão,
que se achava esquecido no tempo, perdido no espaço de um imenso terreno,
reminiscência da grandeza de uma família, outrora abastada, numa grande cidade
daquele país tropical!
Entrou, as salas
vazias, repletas apenas de lembranças esquecidas, de vidas vividas, mas
ausentes.
No meio de uma sala
uma pequena mesa de carvalho, bastante empoeirada, testemunha do tempo e do
abandono daquela casa, atestado do olvido em que se encontrava um espaço outrora
opulento, onde pulsava o desejo de erudição e encantamento!
A casa mais que
centenária, albergava apenas aquela mesa, perdida no meio da sala, como obra de
Duchamp, e sobre ela um livro, apenas um livro, igualmente empoeirado.
Não se podia afirmar
que fora ali esquecido, sequer que fora ali abandonado. Em seu silêncio,
parecia querer dizer mais do que simplesmente ser encarado como um livro
esquecido sobre uma mesa, numa casa esquecida no tempo!
Por óbvio, era uma
mensagem, mas deixada por quem? Com que sentido? Qual mensagem queria
transmitir ao recém chegado?
A capa de couro,
muito antiga, impressa com esmero, a lombada intacta, em que pese envelhecida,
como atestado de sua dignidade. Trazia letras em ouro, que dificilmente podiam
ser lidas, pela camada de pó que lhe retiravam a beleza dourada, que outrora
ostentara.
Acerca-se o visitante do livro, como se estivesse
diante de um altar, busca com delicadeza afastar o pó que obnubila a leitura do
título.
Lê Voltaire, e o
título Le Siècle de Louis XIV. Uma edição de meados do século XVIII, antes da
debacle do Reino de França, que sucumbiu à Fronda dos nobres, que inconsequentes levaram o seu mundo ao ocaso, ao permitir que a burguesia e os sans-culottes
destruíssem o Antigo Regime.
O Voltaire que salta
das páginas folheadas ao acaso, traz o brilho, o orgulho e a admiração por um
Estado que liderava o processo civilizatório em todo o Ocidente. Que trouxe à
humanidade o amor pelo luxo e pela beleza, o encantamento pela arte, pela
música, pela beleza plástica dos espaços públicos de poder.
Luis XIV trouxe ao
mundo o despertar do belo e do magnífico, e o livro nos contava isso, com toda
a reverência que apenas o Rei pode despertar nos corações apaixonados pela
beleza.
Os diamantes, porcelanas, sedas e cristais, que povoam o imaginário de tudo que é belo e desejável até nossos dias, saltam das páginas, que relatam também as batalhas, as vitórias e derrotas da determinação de um homem e do povo que se lhe seguia.
Os diamantes, porcelanas, sedas e cristais, que povoam o imaginário de tudo que é belo e desejável até nossos dias, saltam das páginas, que relatam também as batalhas, as vitórias e derrotas da determinação de um homem e do povo que se lhe seguia.
O Reno como
fronteira natural da França, a Flandres como extensão econômica do reino,
necessária para controlar a indústria da lã em Albion.
Salta do livro um
Rei vivo, que transpira humanidade em suas exaltações políticas, onde não é
necessário saber se disse L’Etat c’est moi! Importa que tenha ou não dito, o
Estado moderno nasceu em 1648, época em que Mazarin ainda governava em nome do
Rei Sol, quando da vitória sobre a Fronda, e a construção de uma administração
centralizada.
O livro mergulhava o
visitante num tempo fora do tempo, ele podia sentir a beleza dos espelhos de
Versailles, o encantamento das canções de Lully, a estonteante imersão nas
peças de teatro encenadas para o Rei.
O livro ressuscitava
os personagens históricos de um século XVII e XVIII que passara há muito tempo,
apenas para os que não podem submergir nas páginas brilhantes dos homens que
encerram seus tesouros nos livros!
Ficou ali parado, lendo e lendo, cada página do livro, cuja mensagem a ser decifrada, se alguma havia, era porque fora deixado sobre a mesa? Esquecido?
Passadas algumas
horas, imerso nos sentimentos de fidelidade à monarquia, entretido com os
arroubos retóricos de Voltaire, como filtros dos personagens que cercavam o
Rei, passa a revoltar-se com a destruição ensandecida, levada a efeito pelo
populacho de Paris, de forma sacrílega, contra o monarca ungido, pelo óleo da Santa
Âmbula, na Catedral de Reims.
Repentinamente,
acorda de seu torpor, ao ser agarrado violentamente por homens que falavam um
francês incompreensível. Não conseguia acreditar, estava sendo arrastado para
uma praça, havia algazarra, gritos e lamentos.
A casa se esfumaça
às suas costas, mergulha no livro, só tendo tempo de ver à sua frente uma
guilhotina, como que saída das páginas de outros livros, tal maldição indizível
a perseguir os amantes da liberdade.
Sem compreender o
que lhe sucedia, é-lhe tomado o livro das mãos, chamado monarquista, e de
pronto, guilhotinado, na Place de la Batille em qualquer dia dos anos do
Terror.
Passadas algumas
horas, restaram a casa vazia, a mesa e o livro, Le Siécle de Louis XIV, pousado
sobre ela, como alerta e mensagem do que não pode ser esquecido!
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