Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O Morto






Estava deitado sobre uma maca, fria, num corredor iluminado por lâmpadas frias, que piscavam continuamente, porque algumas queimadas, como se ninguém percebesse a necessidade de substituição daquelas que já não iluminavam coisa alguma.
Sentiu inicialmente um frio imenso, que parecia partir de sua alma, escutava todas as coisas ao seu redor, mas o burburinho parecia distante, as vozes indistintas, os movimentos não lhe diziam respeito, passavam corpos, imagens, sons, aromas, indistintos. Percebia um cheiro de detergentes, ou antissépticos, ou remédios, ou seja, cheiros agressivos, como se lhe fossem agredir o olfato.
Sua pálpebra semicerrada que não lhe obedecia, já que o que desejava era abrir bem os olhos para saber onde estava. Mas braços e pernas também não lhe obedeciam ao comando, estava enrijecido, e o frio que partia de sua alma não fazia muito sentido, já que era verão, e sempre sentia muito, muito calor!
Pela fresta de sua pálpebra percebia que alguns sujeitos parecendo médicos, discutiam casos, com seus ares sapienciais e circunspectos, mas não se atreviam a tomar qualquer providência que delegavam a outros muito jovens, que cheios de dúvidas e angústias se prontificavam a fazer tudo que se lhes mandavam, e que se resumia a ordenar, escrever e deslocar-se de maneira atávica pelo corredor, como se pudessem resolver todos os casos que se lhes apresentavam, apenas e tão somente pela força da vontade.
O que mais lhe chamou a atenção era a completa falta de compaixão, a discussão que se resumia apenas a dados e considerações sobre possibilidades. Estes jovens que escreviam freneticamente milhares de folhas inúteis de papel, e carimbavam rigorosa e metodicamente cada uma delas, autenticando assim sua ansiedade com um símbolo cartorial de sua profissão, então determinavam autoritariamente e imperativamente a um grupo de outros que vestidos de branco, como aqueles, eram, no entanto, ainda mais alheios ao que se passava com cada um dos assistidos.
O compromisso destes com os lamentos era o de correr para um lado e para o outro, com agulhas, frascos de soro, bandejas de copos grandes, médios, pequenos, cheios de confetes coloridos, que não eram de chocolate, mas cheios de pós e substâncias mágicas que prometiam a vida eterna, seja para acabar com ela ali ou para dar-lhe continuidade.
Tentou entender em primeiro lugar o que fazia ali. Sabia que seu maior temor sempre foi estar num hospital, não porque temesse morrer, mas porque os hospitais são benevolentes câmaras de tortura, criadas para amplificar e prolongar o sofrimento de todos os que têm um atávico medo da morte.
Outro problema é que sempre fora gordinho, que suas veias eram difíceis de serem pescadas pelas agulhas que traziam as mágicas que poderiam lhe dar sobrevida ou trazer-lhe a cura de algum mal. Ainda por cima, havia nascido muito mais peludo do que David Beckham, o que tornava ainda mais torturante a câmara conhecida como hospital.
Permaneceu por algum tempo em silêncio, mesmo porque, não conseguia falar qualquer coisa. Sua consciência da situação foi se aclarando, ninguém se lhe rodeava, o que queria dizer que deveria estar numa condição melhor, e apenas aguardou ter completa capacidade de levantar-se e partir daquela situação insuspeitada até algumas horas atrás quando estava caminhando de forma prazenteira pelas ruas de seu bairro.
Bom, ao pensar nisso, recordou que estava passeando com seu cachorro de estimação, e que era um Fox paulistinha, coisa que não fazia a muito tempo, e quando foi atravessar uma rua, apareceu na esquina, em desabalada carreira, uma destas imensas SUVs que fazem sucesso na inconsciente classe nouveau riche, que compra carros desproporcionalmente grandes para ruas e cidades com ruas estreitas, excesso de veículos e péssimas administrações públicas.
Enfim, uma SUV guiada por um cidadão de bem, que por ter um carro tão grande e caro, sempre para em fila dupla, ocupa duas faixas na rua, entra em duas vagas no Shopping, quando está saindo do estacionamento demora três a quatro vezes mais tempo para por todas as suas bugigangas no carro, para que todos vejam seu poder de compra. Um cidadão consciente de sua dignidade de escolhido por deus para espezinhar o mundo, já que escolhido por ele para ter dinheiro que pode comprar tudo, inclusive a sua consciência moral, e este cidadão, resolve gritar com o filho no banco de trás, que também não tem limites, e desvia o volante, sobe na calçada e opa...
Lembrou que talvez tivesse sido atropelado, mas na realidade não sentia nenhuma dor. Sua primeira preocupação foi com o cachorrino, num esforço tentou chamar o animal que com certeza estaria desesperado sem ele, perdido pelas ruas de seu bairro, sabe-se lá como, sob o risco de pegar pulgas, ser machucado por um outro animal, ou ainda, ser atropelado por um automóvel desgovernado.
Absorto em seus pensamentos, sentiu que alguém lhe colocava um lençol sobre o rosto, pensou, eu não autorizei cirurgia alguma, não vim voluntariamente ao hospital, o que estão fazendo?
Reuniu todas as suas forças, tentou respirar profundamente, agitou-se interiormente, tentou fazer cara feia e então escutou a sentença:
Óbito às 19h53 de dia 9 de algum mês...
Pensou, era só o que me faltava, como vou dizer para a minha amada que não poderei ir ao cinema, dar-lhe um beijo na quinta feira, se acabo de ser declarado morto, sem o meu consentimento?!
Sim, era só o que lhe faltava, mas como era a condição dada, resignou-se e resolveu tirar um cochilo pela eternidade.
A única coisa que lhe inquietava de fato, era quem iria cuidar de seu Fox paulistinha?!

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