Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A realidade do atendimento médico




Sou médico, mas isto não faz a menor diferença, quando se deseja apenas ser um paciente que encontre conforto e atenção humanos, no momento do sofrimento!
Há dez dias passei a ter um sintoma e um sinal, que sem querer ser cabotino, se resumem a ter a urina na cor de café e uma dor na região logo abaixo da costela direita. Era quinta feira, tenho trabalhado das 6h30 às 1h30 da madrugada, quando não leio até as 2h30, assim, não tinha muito tempo para me preocupar, com algo que poderia suportar, até poder realizar exames no sábado ou na segunda.
No sábado, dia em que vou ao consultório, e onde fico mais de 6 horas atendendo meus pacientes, buscando sempre ser o mais humano possível, e até para além de mim, porque sinto que é a única forma de poder ser alguém que faz a diferença, acordei como de costume as 6h30!
Foi então que comecei a vislumbrar de forma concreta, a realidade do atendimento médico, no que podemos dizer elite, sem que o seja por óbvio! Comecei a ter cólicas renais, as infelizes cólicas renais, que destroem toda e qualquer possibilidade de ser feliz! Quem já teve a infeliz experiência de viver as tais cólicas renais, sabe do que estou falando, e tristemente esta era a minha décima segunda crise! Talvez praga de madrinha!
Mediquei-me, para bem comprovar que em casa de ferreiro, espeto de pau, como diz o prolóquio! No entanto, após 7 comprimidos dos mais diversos medicamentos relaxantes, para dor, para cólica, para tudo que há no mundo, a dor persistiu um pouco mais suave! Suava!
Fui ao consultório, porque alguns pacientes não poderiam deixar de ser atendidos, apesar de minhas cólicas! E por fim, depois do nono comprimido, a dor passou e me deixou em paz! 
Domingo pela manhã, novamente ela se anunciou, novamente repeti meu calvário de anti-inflamatórios e analgésicos. Melhorou! Fui almoçar com meu pai e com meus filhos, afinal era dia dos pais, no mês de agosto, aquele do cachorro louco, só não era dia 13! Por que as mães comemoram o dia delas no mês de Maria, no mês das Flores, no mês das noivas e nós pais no mês do Cachorro Louco? Enigma!
Na segunda-feira, novamente toldado pela dor, novo ritual de sedação e uma decisão, vou ao médico! Comemorada a decisão pelos que me amam, lá fui eu para um Hospital escola onde sempre fui atendido com certa presteza, e que realmente era o local onde, como médico cooperado da Unimed, sempre me atenderam bem, sem que me cobrassem a consulta já na entrada. Porque hoje, há o curioso acontecimento de existirem hospitais que não prestam pronto atendimento à Unimed ou a qualquer convênio, cobrando a consulta de emergência, quando estamos em imenso sofrimento, e internando pelo plano de saúde, sem o qual ficamos condenados ao vergonhoso atendimento oferecido pelos nossos governantes! Desapiedado caça níqueis, que tem como administradoras freiras, que com certeza buscam fazer caridade! Vá entender!
Enfim, optei pelo hospital que já conhecia, apesar de na minha sexta crise, ter chegado neste mesmo hospital às 3 horas da madrugada com um surrado Fiat 147 que tinha à época, e ao chegar sozinho desesperado de dor, a primeira coisa que me disseram foi: “O senhor não pode estacionar aí!”. Claro a vaga era especial para os médicos. Mas eu com imensa dor disse: "Olha, tenho muita dor, depois retiro o veículo". A humanidade não falha, após ter feito medicação e a dor ter passado ao sair as 5h15, com todo o estacionamento vazio, lá estava o meu pobre Fiat 147 branco com dois pneus vazios, gentilmente esvaziados pelo guarda do estacionamento, que creio, acredita ter feito algo muito honroso! Mas estas são outras histórias!
Segunda-feira, ainda com dor, tomei o possível de medicação em casa, como sempre os Voltaren da vida, os Tramal, os Buscopan (desculpem a falta da marca registrada), e ao passar um pouco a dor, fui ao dito hospital com meu filho, meu maravilhoso e constante companheiro!
Minha filha é residente em um dos hospitais escolas desta instituição, mas como vocês sabem, médico residente e nada para o hospital, não são muito diferentes, a não ser pelo fato de serem mão de obra barata e especializada, porque são os melhores!
Sabia que ao lado do hospital escola onde sempre fui, a instituição universitária que o mantém, construiu um novo e belo hospital particular, e de convênios (SUS Vade Retro), onde o atendimento promete ser melhor e mais humano e individualizado. Nossa consciência pequeno burguesa nos faz procurar estes pequenos mimos e privilégios, que nem percebemos quanto indecentes são, mas que na hora da dor, parecem fazer algum sentido.
Estacionamos o carro em belo estacionamento particular, onde o preço da hora é mais caro que em qualquer shopping, porque ali não vamos por prazer, mas por necessidade e o que é melhor do que esfolar as pessoas em suas necessidades? Assim, e porque não se pode deixar o automóvel estacionado nas imediações? Porque todos os cidadãos desta cidade, sabem que alí é local de constante furto de automóveis. Se alí são deixados, e isto é tão verdadeiro, não se soluciona o problema por quê? Porque as pessoas vão cuidar daqueles que por sofrimento estão internados, querem cuidar, proteger, ajudar, e assim pouco podem se preocupar com a segurança de seu bem! O poder público, que se não está careca, já o deveria estar de saber que isso acontece, não toma nenhuma providência, porque as pessoas vão ali numa situação de obrigação, de necessidade, e isto estimula o estacionamento particular como empreendimento no Hospital.
Cheguei as 11h10, peguei a senha 16 do pronto atendimento, e cheguei a esta hora porque só então passara a dor, e todos sabem que é impossível andar de automóvel com cólica renal, cada lombada e meio fio é uma descida ao inferno! Acreditei que, tendo sido distribuídas desde as 7h00, eu deveria estar pronto para o atendimento! Há na entrada um belo mosaico com o santo que dá nome ao hospital, tudo muito clean, limpo, maravilhoso, faltou apenas um jazz para acalmar os paciente, em altura razoável.
De repente, choque de realidade! Havia apenas duas pessoas atendendo os paciente que chegavam, apesar de haver 5 locais para atendimento, mas um fazia uma pré-consulta, aquela praga que distancia os médicos de nosso sofrimento, e uma atendente que preenchia uma ficha de cadastro! Nunca entendi porque as fichas de cadastro dos hospitais são tão longas, exaustivas, intrometidas quanto as do crediário de lojas populares de departamento! Juro é mais fácil fazer uma ficha nas Casas Bahia, que são muito rigorosas, do que num hospital sentindo dor!
Enfim, havia já uma paciente irritada, muito jovem, com óculos escuros maiores que seu rosto, e que se queixava de conjuntivite e dor ocular, e ela tinha a senha 11! Comecei a perceber que a luta não seria fácil. O atendente da pré-consulta começou a chamar as senhas preferenciais! Senhas preferenciais, pensei comigo, o que é preferencial num Hospital? Entendi, quem tem mais de 65 anos, grávidas, ou tudo que a lei politicamente correta manda! Parece que faz sentido, mas não faz! Preferencial em pronto atendimento é quem está com um sofrimento que demanda atendimento mais imediato, independente de qualquer outra estupidez legislativa! Mas onde haveria um médico para determinar esta necessidade de preferência? Acredito que no novo departamento que todo Hospital moderno tem, o LINS (Lugar Incerto e Não Sabido). Ora, passados 40 minutos a dor voltou. Como bom macho estoico, sentei numa cadeira de rodas que havia perto da pré-consulta, comecei a suar, sentir dor e empalidecer. Mas "como bom cabrito não berra", pedi a meu filho que se acalmasse.
Há, no entanto, pessoas vocacionadas para se preocuparem com o sofrimento do outro, pessoas que se importam com o ser humano, pessoas que fazem a diferença. Uma auxiliar de enfermagem que passava atávica, com pressa imensa todo o tempo, tentando mitigar o sofrimento das pessoas, deve ter prestado atenção neste pobre humano, sentindo dor, e acercou-se com a pergunta que soa como o anúncio do socorro desejado. “O senhor não está bem?”
Relatei o fato de ser provavelmente minha 12ª crise de cálculo renal, de que sentia dor há 3 dias, e este era o motivo de ali estar e pedir ajuda! Prontamente, inopinadamente levou-me para um box do Pronto Atendimento, não sem antes ter de discutir com a enfermagem do setor, porque percebia meu sofrimento, e não encontrava informação sobre onde colocar-me, na medida em que os box vazios teoricamente tinham pacientes que deveriam ali estar, e os ocupados, estavam compondo a musicalidade infernal do gemido humano!
Consegui ser deixado no box 10, isto mesmo há algo como uns dez ou doze box no pronto atendimento, mas não há nenhum médico ali, naquele setor! Esperei por mais uns 20 minutos, quando se apresentou o primeiro médico! Entrou, com minha ficha na mão, e a carteira que meu filho entregou para preencher meu cadastro, foi a carteira da Unimed de médico cooperado e a minha identidade de médico emitida pelo CRM.
Ele não se apresentou, não disse qual o seu nome, que apenas pude ler no seu avental, foi muito gentil, contei-lhe a história, ele propôs, ao descobrir com minha descrição dos sintomas que era médico, que deveria fazer alguns exames de sangue para verificar a possibilidade de uma Colúria (o fígado foi para o brejo), exame de urina, e claro uma bem vinda ecografia de vias biliares. Prometeu prescrever o bendito Tramal endovenoso.
Para colocar a medicação, outro anjo se apresentou, existe destas bendições, que nem sabemos como a merecemos. Meu calvário hospitalar começou quando tinha 10 anos, fui internado num hospital de crianças e ninguém conseguia pegar as veias deste infeliz mortal. Desde então, todas as internações, e foram quase uma por ano até estes poucos 50, o hospital foi um lugar de dor e ranger de dentes, quando das tentativas de se colocar medicação endovenosa. Mas neste dia foi diferente, expliquei a dificuldade, sou gordinho (eufemismo), peludo, e apavorado com agulhas endovenosas (as intramusculares sem problema, eu mesmo as faço sozinho). Mas a atendente não só pegou na primeira picada, como foi extremamente delicada e atenciosa, fiquei mais tranquilo, mais esperançoso!
Isto já quando marcava o inexorável relógio 12h30! Aguardei o médico solicitar os exames enquanto lia a história do Conde Ciano e sua relação com o sogro famoso, Mussolini. As enfermeiras até as 16 horas passaram duas vezes para perguntar se não havia cansado de ler, mas isso é outra história! Às 16h, como disse, minha bexiga só faltava explodir, o soro do remedio havia acabado há mais de 2 horas, ninguém o havia retirado e tinha de manter meu braço elevado para que o sangue não retornasse pelo equipo. Não sou de reclamar, não sou de vociferar minhas dores, assim, estoicamente, suportei o descaso, mas às 16h chamei o atendente para que eu pudesse ir ao banheiro, o que fiz já que a Ecografia não se apresentava como possibilidade concreta no horizonte de meu sofrimento!
Às 17 horas a dor voltou, com mais intensidade, chamei a atendente e num esforço hercúleo, disse calmamente, que a dor havia voltado ainda mais intensa. Apresentou-se um novo médico, que também não se apresentou, que tinha minha ficha, mas descobriu que era médico quando usei termos técnicos, que me perguntou tudo que já tinha respondido exaustivamente ao outro (um exercício imenso de paciência), mas este, quis parecer mais solícito, e aquilo que o outro por consideração à minha dor não fez, percutir a região lombar de quem sabidamente deveria ter algum grau de dilatação renal por um cálculo que fazia cólicas há três dias, este fez, percutiu e perguntou, veja-se bem, perguntou após meu esperado salto na maca, se sentia dor! Seria escárnio, seria desumanidade? O que pensar?
Saiu dizendo que pediria uma Ecografia e um parcial de urina, ou seja, toda a preocupação irrealizada do outro com o comprometimento hepático, restou abandonada, e reduziu-se ao meu cálculo, que por ser médico, e apesar de não ser gênio, sabia que deveria estar na junção ureterovesical e deveria ter entre 6 e 8 mm. Olha que faço psiquiatria e não urologia!
Depois de instalar novamente Profenid e Tramal endovenoso, entra lépida uma enfermeira do posto do PA que não havia visto até aquele momento e diz como que anunciando a redenção do mundo! “O doutor pediu a ecografia, o senhor não fez xixi não é?” Só pude lhe dizer, para ser o mais educado possível, sabendo que o seu companheiro de plantão, ali, ali no PA é que tinha me permitido ir ao banheiro às 16h00, que lamentava mas já havia feito e disse-lhe eu: “Jovem, já fui ao banheiro há hora e meia, agora teremos de aguardar!” Preocupada pediu ao médico que prescrevesse um sorinho para fazer volume, o que foi feito.
Às 18h30 chamei a enfermagem que me olvidara novamente, já que sem dor, que poderia fazer a ecografia. Aguardamos até as 19h05 quando fomos para a sala de ecografia. Um hospital chiquíssimo, maravilhoso, amplo, belas macas, belos mosaicos, elevadores amplos, tudo muito limpo, charmoso, arrumado, arquitetonicamente impecável!
Chegamos à ecografia, uma auxiliar solícita e sorridente nos recebeu e colocou na maca, ficou digitando coisas de minha ficha na engenhoca ecográfica e saiu dizendo que o médico logo viria. E veio, não demorou muito e assim, entrou a primeira pessoa que se apresentou a mim neste dia, e disse: “Sou Gélio (nome fictício) e vou fazer a sua ecografia!”.
Fiquei feliz que tenha se apresentado, triste por não ter dito Dr. Gélio. Quando sofremos e precisamos de ajuda, de ternura, de atenção, não importa se o médico é doutor, mestre, especialista ou apenas se formou na UniEsquina, o fato é que eu transfiro para ele miticamente um saber que me permite acreditar que pode me ajudar, e o simbolismo da hierarquia e da distância criam o clima necessário de respeito e admiração que permite o tratamento, sua eficácia e eficiência.
Enfim, Gélio começou. Fiz uma descrição novamente de tudo que sofria, e então, ele descobriu que eu era médico, mais um que com meus dados, descobriu que eu era médico pelo discurso que fazia de meu sofrimento, uma lástima! Disse inclusive que em decorrência do tipo e da natureza da dor acreditava que o cálculo estivesse na junção entre ureter e bexiga. Ele até achou um pequeno cálculo de 3 mm no rim, constatou (Bidú!) dilatação do rim e por fim encontrou o miserável cálculo de 6 mm na junção ureterovesical há um centímetro de emergir para a paz celestial.
Realizado o exame da obviedade, voltei para a maca no PA onde não fui procurado por ninguém até as 21h15, quando uma médica jovem, alegre, muito doutoral me informou de tudo que eu já sabia, me recomendou tudo que eu já sabia e já fazia, medicou-me com os mesmos remédios que tomava em casa por minha conta, e me indicou diminuir o consumo de leite (sou um bezerro, admito), e que deveria tomar mais água! Seu tom professoral como que me dizia que ela estava me dando a fórmula do sucesso, a fórmula do bem viver, não fosse o que me disse senso comum de quem já teve cólica mais de 11 vezes, e que tem formação médica que, apesar de ter minha ficha na mão, ela desconhecia!
Há ainda um reparo curioso, cheguei ao hospital as 11h10, saí as 21h15, e neste tempo todo não me foi oferecido qualquer alimento, meu filho que protestou por volta das 14h30 e das 18h00 recebeu como informação que seria providenciada uma dieta leve e livre, coisa que jamais tive o prazer de experimentar. Talvez não quiseram me alimentar para não contribuir com meu peso, ficando assim eles com peso na consciência por alguma contribuição ao meu sobrepeso, buscando o serviço médico que eu além de levar comigo um pouco de dor, de descaso, de obviedades, de olvido, de desrespeito, pudesse deixar lá alguns gramos.
O problema todo é ter transformado a relação médico-paciente não mais numa relação de seres humanos, um que pode mitigar que deve passar a imagem, de que pode sanar o sofrimento pelo saber que tem, com outro que é o sofredor. Uma relação de humanos, uma relação estranha ao consumo e ao serviço! Sim, o problema é que hoje a relação entre médico e paciente é uma relação de consumo, consumerista como dizem os operadores do direito, o médico oferece um serviço, o paciente busca um serviço! Onde está a humanidade nisto tudo?
Lamento, mas com médicos e hospitais assim, os problemas não são planos de saúde, e sim nossas torpes consciências! Lamento, mas neste hospital não voltarei jamais, porque lá fui coisa, lá não fui ninguém, lá sequer fui visto para além da pedra que tinha no rim, e por fim, ficou ela tão intocada que permaneceu precisando de novos atendimentos e novos medicamentos, mas não lá, lá onde não fui ninguém!

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