Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Post Mortem






Estava sentado na poltrona a um canto da biblioteca. Não era vasta, muito menos rica, mas era a sua biblioteca. Naquele espaço sentia-se soberano do tempo, senhor de seus cachorros.
Encontrara um amigo de longa data, que seduzido pelas doutrinas espíritas, chegara-lhe entusiasmado para falar de experiências de quase morte. Este acreditava que essas de fato tratavam de pessoas revividas.
Trouxera-lhe há muito um livro, que ele se forçara a ler, sobre um médico americano que após uma experiência desta natureza, passara a defender “cientificamente” a existência da vida após a morte. O encontro fizera relembrar a leitura e meditar sobre a necessidade de acreditar que assalta com violência proporcional à idade cada humano que conhecera.
Ficou meditando. Olhou para a sua cachorrinha e lembrou o quanto lhe apavorava a simples ideia de que ela deixaria de existir, provavelmente muito antes dele. Apertou-lhe o peito a dor indizível da lembrança dos que amou e tinham partido, eufemismo para aqueles que apenas morreram.
De onde vinha a necessidade que constrangia o humano a acreditar numa vida futura? Para muitos, qualquer explicação para fundamentar a moral exige necessariamente a existência futura, onde cada um deveria ser julgado de acordo com os seus méritos.
Neste sentido, ponderou que então teríamos de crer necessariamente num Deus pessoal que tivesse um conjunto de valores com os quais cada um de nós pudesse ser confrontado e então discernir os que mereciam o paraíso ou o inferno.
No entanto, tanto o agnosticismo, quanto o ateísmo faziam cada vez mais adeptos, sem que se arrefecera as expectativas de vida futura.
Ora, sempre concebera que de fato não há uma separação entre carne e espírito, e no cristianismo tal dicotomia não existe, apesar de Agostinho e seu neoplatonismo. Para o Messias da Galileia ressuscitamos em carne e osso e com certeza, ele estava coberto de razão, porque reviver em qualquer outro corpo ou condição, redundaria que nossa identidade já não seria a mesma.
Faria sentido pensar numa vida após a morte com as experiências de quase morte apresentadas pelos estudiosos do tema? O absurdo, compreendeu, estava em que os homens e mulheres quanto mais velhos, mais ansiosos pela existência de uma vida após a morte. Mas proporcionalmente mais desesperados por qualquer migalha de vida que se lhes possa dar.
Era uma corrida insensata. Querem crer que sobreviverão, mas querem permanecer o tempo mais longo possível, mesmo carregando tantas dores, limitações e desapegos.
Suspirou. Fechou os olhos. Uma certeza inundou-lhe. Apenas os que temem morrer precisam de provas de que há vida após a morte.
A vida realmente não se importa com o vivo. Com o que façamos ou deixamos de fazer enquanto vivos. O que nos torna reféns da morte não é nossa condição de estarmos vivos, mas a de termos consciência de nossa contingência e precariedade.
Refletiu que a consciência que se dá a cada vez que somos lambidos pelo cachorro, que beijamos o amado, que sorrimos com a gravidez de uma filha, que nos preocupamos com o destino de cada outro que existe é que nos faz sabedores da morte.
Que persistir, para além da morte, é memória reescrita na história de cada um que guarda com carinho, com zelo e com constância a existência de um outro que já se extinguiu, mas que permanece no mundo como um feito, como um realizado, que mudou tudo a partir do momento em que viveu.
Estava certo de que cada vida é como uma poesia. Algumas mais belas, outras muito ruins, todas elas merecedoras de serem preservadas para sempre. Não por suas qualidades intrínsecas, não por sua beleza literária, mas porque para alguém, em algum lugar e num dado momento, aquela poesia poderá fazer e dizer tudo que fará diferença. Então, teremos sobrevivido para além da morte.
Levantou-se e agarrou sua pequena cachorrinha, deixou-a beijar-lhe, ou se preferirem lamber-lhe, olhou bem no fundo de seus olhos, e então encontrou a eternidade. Uma eternidade de devoção, que pode durar apenas o tempo de um olhar, que pode durar o tempo que persistir uma lambida. Que perdurará enquanto faça sentido para um outro que tiver a disposição de ler e sentir aquilo que lhe ia no peito.



*Texto apresentado para o Concurso SOBRAMES/AMP/CRM em homenagem ao dia do Médico em 2017.

Urgências






Nunca tivera medo da morte. Para ele esta era uma etapa necessária de um fenômeno natural e contingente que era estar vivo.
Passara os anos sem que o dia de amanhã fosse uma certeza, porque mera probabilidade. Ouvira muitas coisas, lera muitas outras, todas tentando glamourizar o inafastável declínio que sobrevém ao passar dos anos.
Percebia o quanto tais construções tinham como fundamento erros de percepção e, mais que isso, uma busca tresloucada de fazer com que a decadência física fosse superada por discursos superficiais e de autoajuda, tentando convencer-nos do inconfessável.
No entanto, permanecia absolutamente sem medo da morte. Como Epicuro, acreditava que enquanto estamos vivos a morte não existe, quando mortos, então já não estaremos vivos para percebê-la ou senti-la.
Mas com o passar do tempo e o estreitamento do horizonte, foi-lhe surgindo uma urgência. Cada dia mais aguda, cada dia mais premente. Seus desejos continuavam tão intensos e determinantes como sempre o tinham sido, mas agora, parecia-lhe que o dia de amanhã se mostrava uma probabilidade cada dia mais penosa.
A medicina, cada dia mais desumana, enxergava o humano como o destinatário de uma ciência de prolongação da vida a qualquer custo. Os medicamentos se amontoavam sobre a mesa de cabeceira. O celular mais parecia um relógio cuco, anunciando a cada passo um “remedinho” que deveria ser tomado para cada um dos achaques que lhe toldavam o corpo, pelo simples motivo de estar vivo para além do tempo.
Cada vez que encontrava um médico, este não o enxergava mais como um inteiro, um humano, um animal assustado com sua própria decadência, percebendo o esgotamento de suas possibilidades, mas animado de um vivo espírito de desejo e conquista.
Cada um deles descrevia um novo problema, alguns deles que houvera desde o nascimento, mas que só agora apresentava suas nefastas consequências. Dormir restou-lhe quase impossível, então, hipnóticos. As dores na coluna moldavam-lhe o ânimo, então, anti-inflamatórios e miorrelaxantes. Suas células tornaram-se resistentes à glicose, então, hipoglicemiantes.
Apenas não lhes ocorria que ali estava um homem que tinha urgências, que todas se relacionavam com o existir. Não o quanto existir, mas o como existir. Queria apenas ser ouvido, que fosse digno de um tempo para ser escutado, que suas angústias pudessem ser sentidas, compartilhadas, como se a humanidade de ambos fosse percebida e sentida.
Assim, o tempo foi passando, sua decadência física funcionando como uma lupa que fazia perceber e amplificar a decadência moral da sociedade de consumo. Foi-lhe tornando claro que a tecnologia não estava mais a serviço do homem, mas a serviço de si mesma. Que seus desejos já não mais eram importantes. Se o eram, apenas na medida da reprodução da ensandecida ciranda de consumo.
Estava agora na frente da tela de seu computador. O prompt piscando na tela branca anunciava o desejo, a premência de dizer o que sentia. Da angústia do tempo.
Não importava o quanto ainda havia por acontecer, seus desejos persistiam, entre os quais, de realizar plenamente sua humanidade, que se encontrara subitamente na leveza do poeta.
Na poesia que descrevia sua dor e sua angústia, no medo que sentia das agulhas, nascia a possibilidade, de para além do corpo, dos anos, dos sofrimentos, precisar apenas de sua memória e de sua vontade, para viver em cada humano que sentisse a incerteza do amanhã.
A poesia que tantas vezes lida, muitas vezes incompreendida, adornava cada canto de sua existência, que curava sua alma, e que para tanto precisava apenas de papel e impressora.
Compreendera então que os médicos de sua alma, tinham sido os poetas que lhe aplicaram bálsamos para enfrentar a precariedade e a tibieza, para vencer esta tão curta existência.
Houvesse encontrado tantos médicos poetas desde seu nascimento talvez não sentisse tantas dores, ou talvez estas já o tivessem feito sucumbir, mas com certeza, ter-se-ia realizado em versos, permaneceria infenso ao medo da morte e teria vivido suas urgências como preâmbulo da eternidade dos versos que intuíra.
Aplacara-se a ansiedade. Pôs-se a escrever, nem que fosse apenas um verso.



*Texto apresentado para o Concurso SOBRAMES/AMP/CRM em homenagem ao dia do Médico em 2017.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Dia do médico






Os pacientes se agitam,
Olham os relógios,
O tempo passa, a permanência angustia,
Está atrasado... que fazer?

Lá dentro, sempre um sorriso,
Atenção e esmero nas queixas,
O relógio, esquecido,
O que importa é o humano,
Seus sofrimentos e transbordamentos.

Pacientes, com sede, com necessidades,
Água disponível, quiçá máquina de cafezinho,
Sentados, lendo ou conversando,
Falando ao telefone, jogando no celular!

O médico, horas de atenção,
Desprezo pelas necessidades,
Do corpo e da alma, numa dedicação,
Inteira e intensa ao queixume do outro.

Paciente zangado, perturbado, angustiado,
Chega a sua vez, meia, uma hora atrasado,
Ouve o nome tão intensamente desejado,
Um sorriso, um aperto de mão,
Um olhar cheio de interesse e consideração!

O tempo só passa na sala de espera,
Nunca passa dentro do consultório,
E dentro, sempre há mais algo a falar,
Lá fora, muitos que acreditam não ter muito,
Nem para falar, nem para esperar,
Mas lá está o médico...

Que sujeito mais desligado do tempo,
Porque seu tempo, é o tempo de amar,
Cada humano que se apresenta,
Com todos os sofrimentos, dores e lamentos,
Que só seus ouvidos são capazes de considerar.

E hoje é o dia do médico,
E não é feriado,
E as listas, bombando de garranchos,
Como se a pressa não fizesse parte,
Do destino de dedicação e esmero,
Em dar conta dos sofrimentos, das dores,
De todos aqueles que buscam,
No bondoso Esculápio,
Alguém para mitigar todas as angustias.

Feliz Dia dos Médicos,
Nem feriado, cheio de garranchos,
Cheio de cobranças,
Cheio de desencantos,
Mas marcado pela perseverança,
De se crer capaz de por humanidade,
Dar, nem que transitório,
Cobro ao sofrimento.

Feliz Dia do Médico!
E olha que não faço garranchos!