Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Descriminalizar não é legalizar...


 



A sociedade brasileira a todo o tempo está envolta com o questionamento sobre a “legalização” do aborto, esquecendo que descriminalizar não é legalizar, e que crime é permitir o massacre das mulheres que não desejam ou não podem ser mães, porque não acreditam no que cremos e desejamos.
A questão da descriminalização ou despenalização do aborto está intimamente ligada a bases sociais e políticas das quais não pode ser separada.
A primeira base sobre a qual a discussão deve estar jungida é que vivemos num Estado laico. A segunda base é que valores, por mais nobres e por mais fundamentais que possam ser para uma comunidade de crentes ou de políticos, não pode, em nenhuma hipótese se impor à toda a nação, mas apenas àqueles que aderirem, de maneira voluntária, a suas crenças e determinações.
Descriminalizar em Direito Penal consiste no ato de se considerar atípico um fato que ocorre na sociedade. Ora, é impossível que sem uma dose exagerada de desonestidade e hipocrisia, não se compreenda que a descriminalização do aborto não significa a sua liberação, muito menos o seu estímulo ou como os seus desafetos tendenciosamente rotulam “legalizar”. Descriminalizar não é tornar legal, é apenas tornar atípico, do ponto de vista penal, podendo permanecer como típico, imoral, indecente ou o que quer que se queira do ponto de vista moral, ético ou ainda reprovável dentro das comunidades de fé e de convicção política.
O adultério deixou de ser crime, mas para a grande maioria dos fiéis cristãos, dos religiosos de todos os matizes e para boa parte da jurisprudência, continua sofrendo de certa repreensão moral, mais hipócrita do que efetiva, mas ainda assim legítima em suas comunidades de pensamento.
Para compreendermos a despenalização do aborto devemos entender que tal conceito tem dois aspectos. Um primeiro mais amplo que consiste em retirar da esfera jurídica o ato de interromper voluntariamente a gravidez, deixando exclusivamente na esfera da saúde e da consciência da mulher, dentro de seus direitos reprodutivos a decisão quanto à propriedade de levar a termo a gravidez, o que entendemos por descriminalização.
O segundo aspecto, mais restrito, visaria apenas uma previsão legal de proibição de aplicação da pena, quando a interrupção fosse praticada pela gestante ou de acordo com sua vontade, mantendo-se porém o ato como ilícito ou crime nos casos em que, vítima de qualquer violência, a mulher sofra o aborto contra a sua vontade e sua consciência. Isto seria a despenalização, mantendo a sanção moral e jurídica, nos casos de alheamento da vontade da mulher, sobre o ato.
No entanto ao confundirmos a interrupção voluntária da gravidez com o aborto, provocamos uma sanção moral e religiosa que se impõe de maneira desonesta a toda a população.
A defesa do direito de a mulher escolher sobre o prosseguimento ou não de uma gravidez, cabe somente a ela, está no campo das difíceis e dolorosas decisões que a mulher, e só ela, podem tomar quanto à sanidade do ato da maternidade para si e para sua comunidade.
Como nós homens, podemos discutir o direito de alguém dar à luz um novo ser humano ou não, se sequer somos capazes, na grande maioria das vezes de entender em sua plenitude a relação materno-fetal e depois, a relação que se prolonga no tempo entre a mãe e o filho?
O conceito de aborto hoje vigente no Brasil, está construído a partir dos artigos 124 a 127 do nosso vetusto Código Penal, uma das muitas heranças de períodos ditatoriais e paternalistas em nossa evolução política.
O conceito hoje presente é o de que aborto é a interrupção da gravidez antes de seu termo. Neste aspecto em voto do Ministro Cezar Peluzo, do qual discordamos em tese, temos um aspecto que serve para denunciar que não há, efetivamente, nenhum motivo ético ou jurídico que justifique a decisão do STF de permitir o aborto de fetos anencefálicos. Seu voto na ADPF 54 não é a favor da permanência da criminalização e do sofrimento de milhares de mães brasileiras, é a denúncia da hipocrisia reinante no Congresso brasileiro que se nega a cumprir com o seu dever de mudar a lei para acompanhar o desenvolvimento da sociedade brasileira, e mais que isso, tornar efetiva a separação da Igreja do Estado, que tarda já mais de 123 anos, posto que, falamos em bancadas evangélicas e também em bancada católica.
Ora, no congresso só podem existir bancadas partidárias, significando as forças condutoras da sociedade brasileira. Uma igreja que busque eleger representantes para afirmar e impor seus valores a toda a sociedade brasileira, não é mais uma igreja, mas uma sociedade de gangsteres ou um partido político reacionário, donde, deve deixar de ser reconhecida como Igreja e passar a ser tratada como movimento político e social com todas as suas implicações.
Se toleramos o aborto moral, aquele permitido quando a gestação resulta de estupro e ainda, quando toleramos o aborto sanitário, quando a gestação traz grave risco de saúde à mulher, entendemos que a saúde física e psíquica da mulher estão entre os direitos inalienáveis e fundamentais protegidos pela Carta de 1988, principalmente em seu artigo 5o.
Importante é reforçar que não estamos aqui defendendo o aborto ou muito menos a sua promoção, e para que se compreenda a posição que defendemos é importante visitar a obra de Ronald Dworkin, Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais, onde se expressa brilhantemente o doutrinador:

Gostaria muito de convencer essas pessoas (defensoras da criminalização do aborto), caso estejam dispostas a ouvir-me, de que elas compreenderam mal o fundamento de suas próprias convicções. Ou, de qualquer modo, de que existe um enfoque convincente da controvérsia moral que lhes permitiria continuar a acreditar, com plena convicção, que o aborto é moralmente condenável, mas também a acreditar, com igual fervor, que as mulheres grávidas devem ser livres para tomar uma decisão diferente se suas próprias convicções assim o permitirem ou exigirem. É essa a ambição maior deste livro. (destacamos [1])

Compreender a gravidez como mais um dos direitos da mulher, e defende-la como uma escolha possível, torna incompreensível a aplicação do tipo penal aborto à interrupção voluntária da gravidez.
Se, mesmo que de forma hipócrita, compreendemos a pena como uma medida que busca necessariamente a proteção de bens jurídicos universalmente entendidos como inalienáveis e a reintegração do agente na sociedade, ao aplicarmos pena a uma mãe que interrompe voluntariamente a gravidez, produzimos duas situações absurdas: primeiro, o valor vida fetal para ela não tem o mesmo valor que consideramos universal. Mais, só ela pode dimensionar o valor da vida que carrega dentro de si, sendo incompreensível para todos os outros humanos este valor; segundo, a pena no caso do aborto não a reintegra na sociedade, a estigmatiza, a desvaloriza e torna-a culpada de algo brutal e que marcam-na psicológica, moral e socialmente, tornando-se assim um desserviço à sociedade.
Uma leitura desapaixonada e atenta do aborto enquanto problema social no Brasil denuncia que a atual situação é absolutamente insustentável, que a penalização da interrupção voluntária da gravidez só se justifica pela confusão entre Estado e Igreja, e pela covardia mais abjeta e torpe de nossos parlamentares, que deixam de cumprir com o dever de dar à nação brasileira uma legislação que seja para todos, e não apenas para os fundamentalistas de plantão!


[1] DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo, Martins Fontes, 2003. Fl. IX.

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