Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Demiurgo




Nossas vidas são curtas! Mas, são longas! Alguns querem viver eternamente, outros querem que ela seja breve, às vezes tão breve, que tomam para si o agir para abreviá-la em definitivo. Suspeito que haja um demiurgo pouco amigável, ou melhor, com pouco humor a tecer nossos destinos.
Passei a refletir sobre o tempo, ou melhor, sobre o seu desperdício, desde um momento, que não saberia precisar, mas que compreendi era fugaz demais para perpetuar-se, longo demais para ser insensatamente revivido.
Enfim, reflito sobre o tempo, a tanto tempo, que consome o tempo que tenho para viver meu tempo. Talvez seja assim, uma maldição de um demiurgo mal humorado! Dá-nos a consciência de existir apenas e tão somente para nos torturar com a certeza de que mal começamos, estamos a acabar!
De toda forma, a memória é uma aliada para resgatar o tempo que vivemos com todos os que amamos, com todos os que desejamos ter amado mais, com todos os que não gostaríamos de ter feito desembarcar de nossas vidas. A memória, como um baú de recordações, onde atiramos fragmentos variados de nós mesmos, não é algo que reste organizado, catalogado ou classificado, porque na ânsia de viver, atiramos tudo, o que queremos e o que não queremos naquele baú, pleno de pedaços fragmentários de sentimentos, emoções vividas.
Vasculho então ávido o baú, não sem antes, ter tido muito trabalho com as trancas e ferrolhos que apliquei sobre a tampa, para esconder minhas responsabilidades sobre muitos dos objetos quebrados, que não soube preservar. Um trabalho redobrado na medida em que, cada cadeado, cada ferrolho, trazia a marca de alguém magoado, entristecido, embrutecido, por minha estupidez, minha fragilidade, minha falta de doação.
Mas apesar do trabalho, e de ter ferido as mãos, vasculho então o baú. Vou retirando pedaços de cadáveres, alguns insepultos, outros decompostos, mãos, pés, rostos, cabelos, torsos, pernas e imagens, misturadas, confundidas, ladeiras de Ouro Preto com escadas da Torre Eiffel, jardins de Lisboa com vinhedos da Califórnia, Sol que nasce no mar e se põe no mar, porque misturados os oceanos, misturados os continentes, misturados os tempos, misturadas as lembranças.
Como pude deixar que todo o tempo, pedaços tão díspares de mim, fossem sendo atirados no baú com um total desassossego? Como permiti que cadáveres restassem insepultos tanto tempo e que lugares e tempos se confundissem, impedindo que cada tempo fosse vivido intensamente e tão somente nele mesmo?
Sim, nossas vidas são tão curtas, absurdamente curtas, apesar de vivermos o dobro de nossos ancestrais. Mas o curioso, é que apesar de não vivermos tão somente 40 anos, mas agora 80, ou quase isso, a vida ainda é mais curta do que foi para eles. A vida é mais cruel agora do que foi, é mais cheia de memórias, todas elas estropiadas, abandonadas, atiradas sem razão dentro de um baú de memórias que nos aflige.
Carregamos o baú e vamos aplicando-lhe trancas, ferrolhos e cadeados, com os restos dos seres amados. Atiramos a chave bem longe nas profundezas de nossas sombras, escondemo-nos de cada resto mortal que deixamos no caminho da vida. Mas carregamos o baú e ele denuncia o tempo vivido, ele clama por uma organização necessária para dar sentido à existência, sentido que quando começamos a buscar, já é muito tarde, como se o tempo para viver já tivesse acabado, como se nosso corpo anunciasse um ocaso próximo, de tudo o que foi desejado, mas não foi vivido.
Então tenho certeza, o demiurgo que nos criou ri, ri a velas despregadas, singra oceanos de riso, de nossa insignificância, de nossa pequenez, de nossa contingência. Dá-nos consciência da importância da vida, do amor, da amizade, do carinho, quando já é tarde para perceber que abundaram em nossas vidas e o que fizemos foi perdê-los.
Tenho certeza, este demiurgo malévolo, senhor do tempo, tem o prazer imensurável de nos ver lamentar a vida curta que temos, mesmo que tenhamos sempre a desperdiçado pensando no passado ou projetando o futuro. Que nossa estultez seja a chave para entender porque abandonamos aqueles que amamos, o por que não fazemos amor todos os dias, não beijamos todos os dias, não nos entregamos todos os dias, já que ontem não pode ser mais resgatado e amanhã..., o amanhã não existe é mera possibilidade.
Certeza. Sim, tantas certezas, mas nenhuma que diminua minha aflição com a pequenez do tempo. De cada tempo, vivido como ontem, ou como amanhã, sem se concentrar nos amores para viver hoje.
Certeza. Tão mais forte, quando vemos alguém que por amar, por mais de 60 anos, morre porque o outro deixou, agora, a tão pouco tempo, este grão de areia miserável, num Universo tão grande e inconcebível. Um amor, que levou a chave do baú das lembranças vividas, dos momentos compartidos, que tinha todas as chaves de todas as trancas.
Enfim, a morte não é o fim de uma vida, mas o termo do tempo, o definitivo esconder de um baú de memórias, desorganizadas, lamentadas, abandonadas, mas que só fazem sentido pela intensidade do que foi vivido!
Meu corpo arrasta meu baú, cada vez mais pesado, e não sei se terei tempo para organizar cada pedaço e lasca, nem se poderei enterrar os cadáveres com todos os rituais e exéquias que todos e cada um merecem, mas acredito que é o tempo de por em ordem, porque as pernas cansam, os braços doem, perco forças, enxergo mal e sei que o tempo que me resta é apenas para satisfazer a infinita sede de riso do demiurgo que contempla o tempo, enquanto eu, afundo no mar de lamentos.

Dói-me a alma. Desfaleço! Permanece o baú, com mais algumas trancas e outras tantas lembranças! Escoa-se o tempo mas, que não seja breve, que não seja pequena a clepsidra.

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