Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Migalhas




Certo dia caminhava cabisbaixo pela calçada, envolto nas milhares de desrazões que governam o mundo, que governam nossas vidas! O olhar, mirando os pés, perdiam-se em não sei quantas conjecturas sobre a necessidade de caminhar!
Os pensamentos pareciam difíceis, pesados, brumosos, escurecidos, estapafúrdios. Como se os pensamentos pudessem ser assim qualificados, ou como se pudessem ser algo diferente do que todas estas formas de sentir.
Enfim, caminhava! Surpreendia-se com os tropicões, com as moedas, com os restos de comida, de roupas, de cartas, de bilhetes, de cupons, de cigarros, de bijuterias, como uma imensidade de migalhas que apontavam a insignificância das vidas que passam, sem nem mesmo refletir sobre seus caminhos, sobre seus passos, sobre seus objetivos.
Mas, ele caminhava, e permanecia de cabeça baixa, porque cruzar olhares com desconhecidos que não se afetavam com seu destino, com a sorte que se negava a sorrir em seus dias, era como sentir plenamente sua desdita, sua inadequação, sua não existência.
E, evitando os olhares, seguia em frente, como poderia estar seguindo para um lado, ou para outro, ou para trás, porque enfim, poucos sabemos para onde vamos? porque vamos? nem para quê?
Ocultando-se o melhor que pode de suas dores e de suas insuficiências, começou a seguir o caminho que se descortinava com pequenos restos de folhas impressas, de um livro sem capa, sem autor, sem história. Agachou-se e apanhou um pequeno fragmento, parou, de súbito, e em êxtase, naquele fragmento, havia um número de página. 34.
Não havia dúvidas, era a migalha de um livro, um pedaço de página, de um lado, o número 34, do outro, 35. Estava escrito: ...”ia; aproveita o momento presente, espreme- (...) de uvas e deixa o bagaço para os porcos –“, do outro lado: “distinção de ética. Não tem nenhu.. (...) Se o acusassem de ter feito trapaç...”.
Era um pequeno fragmento, uma história inacabada. Mas ali, parado na rua, pensando sobre a falta de sentido de sua existência, refletiu sobre o fragmento. Sim, ele era como aquele pedaço de página. Nascera para fazer parte de um livro maior, para ser lido, compreendido, guardado, era algo inteiro, que depositava muito mais do que as palavras, pois quando juntas, permitiam as mais variadas leituras possíveis. Mas ele, como o livro, foi sendo destruído, tornado aos pedaços, deixado nas calçadas como restos de algo que perdeu sua completude, e parecia agora, sequer fazer sentido.
Mas então, que se aproveite o momento, que se espremam as uvas e se faça o vinho, e o bagaço, que se lancem aos porcos. Mas então, seria ele um bagaço, porque sentia-se atirado aos porcos, abandonado, sem importância. Sim, fora espremido, e tudo que levava na alma, fora-lhe tirado, subtraído, até que dele e de seus pensamentos só restasse o bagaço.
Refletiu por um momento sobre a página 34 e lançou-se à exegese da pequena migalha, na página 35. Distinção ética!? Sim, quantas vezes na vida propôs-se fazer a distinção entre coisas que era certo se fazer e o que não era! Mas realmente nunca poderiam acusá-lo de ter feito qualquer trapaça. Tinha agido sempre de forma a que, se merecesse o inferno, tal não seria porque agira de forma desleal. Mas agora, todo aquele pensar e agir o tinham conduzido àquele momento de reflexão na calçada, com um pedaço de papel, ou melhor, o pedaço de uma página, de um livro, que não sabia qual era, que não sabia por quem escrito, mas que o descrevia com tal profundidade, que preferia ser aquele pedaço sujo de papel sobre a calçada a ser aquele amontoado de pensamentos em conflito que estancara seu destino, por caminhos que desconhecia.
Ficara ali, estupidificado com o pedaço de folha nas mãos, identificado com cada palavra, com cada expressão das páginas 34 e 35 de um livro que não mais estava inteiro, como ele também não estava.
Ficara ali, tão sozinho quanto o fragmento abandonado para ser destruído sob os calcanhares de seres que apenas compõe o cenário de um mundo ensandecido e triste, alheios uns aos outros, alienados de seus próprios destinos, incapazes de achar a folha onde o pedaço seria parte, onde a completude daria sentido, onde o texto escreveria uma forma de ler a vida, que faria sentido!
Diz-se que ao se passar naquela calçada, muitos anos depois deste fato, todos os dias, a mesma migalha, está na calçada, que todos os dias ela se eleva com uma brisa ao meio dia e que flana à altura dos olhos. Que se revira de um lado e de outro.
Que as pessoas não vêm mais aquele que caminhava cabisbaixo, e que estancava ao encontrar o pequeno pedaço de folha, mas agora, ao ver todos os dias este mesmo pedaço elevar-se e ressurgir, começam a acreditar que aquele homem, invisível, como a grande maioria de nós, permanece ali, cabisbaixo, sem seguir caminho algum, refletindo e refletindo, cada dia, sobre nossas vidas, sobre o vinho, bom ou mau, que nos extraem, e sobre os bagaços que nos tornamos, e então atirados aos porcos!
Os passantes começam a sentir medo de passar por aquele lugar, porque faz com que reflitam sobre seu comportamento, sobre a ética de suas relações, sobre a lealdade em suas amizades, e amedrontam-se ao perceber que era melhor estancar a marcha ali, porque de fato, poucos, talvez nenhum, saibam de forma concreta, para onde estão indo!

Ele, cabisbaixo e invisível, permanece naquele trecho da calçada, por um tempo que nem mesmo ele é capaz de dizer, mas, sempre com a pequena migalha na mão, lendo-a de um lado e de outro, como resumo infinito de sua existência, numa busca incansável de dar sentido, sem deixar de existir!

Um comentário:

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