Espaço de sentir e pensar de Laércio Lopes de Araujo

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Humano



FERNANDA TORRES

Bustos romanos seduzem pelos defeitos; narigudos, papudos e olheirudos, se distanciam do ideal grego
Em "A Invenção do Humano", Harold Bloom afirma que a consciência do homem moderno nasceu com Hamlet. Shakespeare, afinal, seria o tronco, e todo o resto --Freud, Dostoiévski e Guimarães Rosa--, seus galhos.
O crítico americano descreve o dinamarquês como um homem contemporâneo preso em uma trama medieval. Os demais personagens não seriam capazes de raciocinar como o jovem, o autor não lhes dota do mesmo vocabulário. No choque, a razão do príncipe só se justifica através da loucura.
Estive na Galeria Uffizi, em Florença, no começo deste ano.
Lá, é possível acompanhar muitos desses saltos evolutivos na história da criação.
Iniciei o périplo pelas pinturas medievais. Sacras e bidimensionais, há pouco de humano nelas; são esquemáticas como a corte do rei Claudio.
Giotto é quem dá o passo ao descolar as figuras do fundo, dando-lhes profundidade no sentido amplo da palavra. A perspectiva expande o sofrimento de Madonas, Moisés e Cristos crucificados por bons séculos. Vale ressaltar a abnegação com que os mestres enfrentaram a restrição temática.
Para quem segue pelos corredores da galeria, a repetição de passagens bíblicas e divindades gregas cria um estado de beleza e embriaguez interrompido pelos primeiros retratos realistas da Renascença.
Na sala oito, os perfis da duquesa e do duque de Urbino, pintados em 1472 por Piero della Francesca, marcam, na impressionante coleção, o instante em que o homem se coloca em pé de igualdade com os santos.
As salas seguintes exibem uma variedade fascinante de rostos comuns, nobres, mas comuns, semelhantes à turistada. O duque de Urbino é pai de Hamlet e foi criado mais de século antes dele.
A Cosac Naify acaba de lançar uma edição preciosa do "Decameron". Cem anos antes de Piero della Francesca, Bocaccio pedia desculpas ao Espírito Santo para falar dos dilemas mundanos de quem sobreviveu ao século 14.
Entre 1300 e 1400, a Europa enfrentou a Guerra dos Cem Anos, a corrupção desenfreada do clero e a peste negra, epidemia que dizimou 75 milhões de pessoas, um terço da população europeia.
O cenário desolador flexibilizou a moral. A noção de família e propriedade foi abalada, bem como a crença na justiça divina. Os que sobraram se arrumaram como puderam, não como Deus queria.
"Sabe-se que as coisas desse mundo são todas transitórias e mortais, em si e fora de si cheias de tédio, de angústias e de tormentas, passíveis de infinitos perigos; as quais nós, que vivemos misturados a elas e somos parte delas, não poderíamos certamente resistir nem evitar se a especial graça de Deus não nos emprestasse força e sagacidade."
O discurso caberia na boca de Hamlet, ou Macbeth, não fosse a conclusão tão reverente ao Altíssimo. Aparentemente devoto, Boccaccio esclarece, logo na introdução, que sua novela não é direcionada a Deus, mas ao juízo dos homens.
Ou à sua falta de juízo. "Decameron" é um decálogo de desvios, um paraíso de putas ardilosas, freiras volúveis, padres ladrões e bandidos de toda a espécie.
Os bustos de mármore do Império Romano também seduzem por seus defeitos. Narigudos, papudos e olheirudos, se distanciam do ideal olímpico dos gregos.
Admiro a Vênus e a Samotrácia tanto quanto os Tintorettos da Scuola de San Rocco, mas as rugas romanas me provocam o mesmo deleite dos rostos da Renascença, ou dos pecadores de Boccaccio; elas revelam os anseios, a fragilidade, a torpeza e a mortalidade de gente como eu e você.
Gosto também de admirar o modelo em cera do casal de Australopithecus afarensis caminhando abraçado pela planície de Laetoli, no Museu de História Natural de Nova York. O par de macacos bípedes passeia enlaçado, enquanto admira a paisagem ancestral. São Adão e Eva encarnados e não destoam dos "sapiens" apaixonados.
Difícil mesmo é reconhecer o que há de humano nos games interativos que meu filho adolescente joga sem parar, on-line, com os amigos virtuais.
Quando o vejo aos berros, imerso na batalha imaginária, tenho dificuldade de acreditar que, algum dia, Hamlet fará sentido para ele; e temo, como a mais retrógrada das santas inquisidoras, pelo futuro da humanidade.

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