Estava deitado sobre uma maca, fria, num corredor
iluminado por lâmpadas frias, que piscavam continuamente, porque algumas
queimadas, como se ninguém percebesse a necessidade de substituição daquelas
que já não iluminavam coisa alguma.
Sentiu inicialmente um frio imenso, que parecia
partir de sua alma, escutava todas as coisas ao seu redor, mas o burburinho
parecia distante, as vozes indistintas, os movimentos não lhe diziam respeito,
passavam corpos, imagens, sons, aromas, indistintos. Percebia um cheiro de
detergentes, ou antissépticos, ou remédios, ou seja, cheiros agressivos, como
se lhe fossem agredir o olfato.
Sua pálpebra semicerrada que não lhe obedecia, já
que o que desejava era abrir bem os olhos para saber onde estava. Mas braços e pernas
também não lhe obedeciam ao comando, estava enrijecido, e o frio que partia de
sua alma não fazia muito sentido, já que era verão, e sempre sentia muito,
muito calor!
Pela fresta de sua pálpebra percebia que alguns
sujeitos parecendo médicos, discutiam casos, com seus ares sapienciais e
circunspectos, mas não se atreviam a tomar qualquer providência que delegavam a
outros muito jovens, que cheios de dúvidas e angústias se prontificavam a fazer
tudo que se lhes mandavam, e que se resumia a ordenar, escrever e deslocar-se
de maneira atávica pelo corredor, como se pudessem resolver todos os casos que
se lhes apresentavam, apenas e tão somente pela força da vontade.
O que mais lhe chamou a atenção era a completa
falta de compaixão, a discussão que se resumia apenas a dados e considerações
sobre possibilidades. Estes jovens que escreviam freneticamente milhares de
folhas inúteis de papel, e carimbavam rigorosa e metodicamente cada uma delas,
autenticando assim sua ansiedade com um símbolo cartorial de sua profissão,
então determinavam autoritariamente e imperativamente a um grupo de outros que
vestidos de branco, como aqueles, eram, no entanto, ainda mais alheios ao que
se passava com cada um dos assistidos.
O compromisso destes com os lamentos era o de
correr para um lado e para o outro, com agulhas, frascos de soro, bandejas de copos
grandes, médios, pequenos, cheios de confetes coloridos, que não eram de
chocolate, mas cheios de pós e substâncias mágicas que prometiam a vida eterna,
seja para acabar com ela ali ou para dar-lhe continuidade.
Tentou entender em primeiro lugar o que fazia ali.
Sabia que seu maior temor sempre foi estar num hospital, não porque temesse
morrer, mas porque os hospitais são benevolentes câmaras de tortura, criadas
para amplificar e prolongar o sofrimento de todos os que têm um atávico medo da
morte.
Outro problema é que sempre fora gordinho, que
suas veias eram difíceis de serem pescadas pelas agulhas que traziam as mágicas
que poderiam lhe dar sobrevida ou trazer-lhe a cura de algum mal. Ainda por
cima, havia nascido muito mais peludo do que David Beckham, o que tornava ainda
mais torturante a câmara conhecida como hospital.
Permaneceu por algum tempo em silêncio, mesmo
porque, não conseguia falar qualquer coisa. Sua consciência da situação foi se
aclarando, ninguém se lhe rodeava, o que queria dizer que deveria estar numa
condição melhor, e apenas aguardou ter completa capacidade de levantar-se e
partir daquela situação insuspeitada até algumas horas atrás quando estava
caminhando de forma prazenteira pelas ruas de seu bairro.
Bom, ao pensar nisso, recordou que estava passeando
com seu cachorro de estimação, e que era um Fox paulistinha, coisa que não
fazia a muito tempo, e quando foi atravessar uma rua, apareceu na esquina, em
desabalada carreira, uma destas imensas SUVs que fazem sucesso na inconsciente
classe nouveau riche, que compra
carros desproporcionalmente grandes para ruas e cidades com ruas estreitas,
excesso de veículos e péssimas administrações públicas.
Enfim, uma SUV guiada por um cidadão de bem, que
por ter um carro tão grande e caro, sempre para em fila dupla, ocupa duas
faixas na rua, entra em duas vagas no Shopping, quando está saindo do
estacionamento demora três a quatro vezes mais tempo para por todas as suas
bugigangas no carro, para que todos vejam seu poder de compra. Um cidadão consciente
de sua dignidade de escolhido por deus para espezinhar o mundo, já que
escolhido por ele para ter dinheiro que pode comprar tudo, inclusive a sua
consciência moral, e este cidadão, resolve gritar com o filho no banco de trás,
que também não tem limites, e desvia o volante, sobe na calçada e opa...
Lembrou que talvez tivesse sido atropelado, mas na
realidade não sentia nenhuma dor. Sua primeira preocupação foi com o
cachorrino, num esforço tentou chamar o animal que com certeza estaria
desesperado sem ele, perdido pelas ruas de seu bairro, sabe-se lá como, sob o
risco de pegar pulgas, ser machucado por um outro animal, ou ainda, ser
atropelado por um automóvel desgovernado.
Absorto em seus pensamentos, sentiu que alguém lhe
colocava um lençol sobre o rosto, pensou, eu não autorizei cirurgia alguma,
não vim voluntariamente ao hospital, o que estão fazendo?
Reuniu todas as suas forças, tentou respirar
profundamente, agitou-se interiormente, tentou fazer cara feia e então escutou
a sentença:
Óbito às 19h53 de dia 9 de algum mês...
Pensou, era só o que me faltava, como vou dizer
para a minha amada que não poderei ir ao cinema, dar-lhe um beijo na quinta
feira, se acabo de ser declarado morto, sem o meu consentimento?!
Sim, era só o que lhe faltava, mas como era a
condição dada, resignou-se e resolveu tirar um cochilo pela eternidade.
A única coisa que lhe inquietava de fato, era quem
iria cuidar de seu Fox paulistinha?!
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