A questão da descriminalização ou
despenalização do aborto está intimamente ligada a bases sociais e políticas
das quais não pode ser separada. A primeira base sobre a qual a discussão deve
estar jungida é que vivemos num Estado laico. A segunda base é que valores, por
mais nobres e por mais fundamentais, que uma comunidade de crentes ou de
políticos, não pode, em nenhuma hipótese se pode impor à nação, mas apenas
àqueles que aderirem de maneira voluntária a suas crenças e determinações.
Descriminalizar em Direito Penal
consiste no ato de se considerar atípico um fato que ocorre na sociedade. Ora,
é impossível que sem uma dose exagerada de desonestidade e hipocrisia, não se
compreenda que a descriminalização do aborto não significa a sua liberação,
muito menos o seu estímulo. Descriminalizar não é tornar legal, é apenas tornar
atípico, do ponto de vista penal, podendo permanecer como típico, imoral,
indecente ou o que quer que se queira do ponto de vista moral, ético ou ainda
reprovável dentro das comunidades de fé e de convicção política.
O adultério deixou de ser crime,
mas para a grande maioria dos fiéis cristãos, dos religiosos de todos os
matizes e para boa parte da jurisprudência, continua sofrendo de certa
repreensão moral, mais hipócrita do que efetiva, mas ainda assim legítima em
suas comunidades de pensamento.
Para compreendermos a
despenalização do aborto devemos entender que tal conceito tem dois aspectos.
Um primeiro mais amplo que consiste em retirar da esfera jurídica o ato de
interromper voluntariamente a gravidez, deixando exclusivamente na esfera da
saúde e da consciência da mulher, dentro de seus direitos reprodutivos, o que
entendemos por descriminalização.
O segundo aspecto, mais restrito,
visaria apenas uma previsão legal de proibição de aplicação da pena, quando a
interrupção fosse praticada pela gestante ou de acordo com sua vontade,
mantendo-se porém o ato como ilícito ou crime. Isto seria a despenalização,
mantendo a sanção moral sobre o ato.
No entanto ao confundirmos a
interrupção voluntária da gravidez com o aborto, provocamos uma sanção moral e
religiosa que se impõe de maneira desonesta a toda a população. A defesa do
direito de a mulher escolher sobre o prosseguimento ou não de uma gravidez,
cabe somente a ela, está no campo das difíceis e dolorosas decisões que a
mulher, e só ela, podem tomar quanto à sanidade do ato da maternidade para si e
para sua comunidade. Como nós homens, podemos discutir o direito de alguém dar
à luz um novo ser humano ou não, se sequer somos capazes, na grande maioria das
vezes de entender em sua plenitude a relação materno-fetal e depois, a relação
que se prolonga no tempo entre a mãe e o filho?
O conceito de aborto hoje vigente
no Brasil, está construído a partir dos artigos 124 a 127 do Código Penal
vigente, uma das muitas heranças de períodos ditatoriais e paternalistas em
nossa evolução política.
O conceito hoje vigente é o de que
aborto é a interrupção da gravidez antes de seu termo. Neste aspecto o voto do
Ministro Cezar Peluzo, do qual discordamos em tese, é perfeito ao denunciar que
não há, efetivamente, nenhum motivo ético ou jurídico que justifique a decisão
do STF de permitir o aborto de fetos anencefálicos. Seu voto não é a favor da
permanência da criminalização e do sofrimento de milhares de mães brasileiras,
é a denúncia da hipocrisia reinante no Congresso brasileiro que se nega a
cumprir com o seu dever de mudar a lei para acompanhar o desenvolvimento da
sociedade brasileira, e mais que isso, tornar efetiva a separação da Igreja do
Estado, que tarda já mais de 123 anos, posto que, falamos em bancada
evangélica, bancada católica, ora no congresso só podem existir bancadas
partidárias, significando as forças condutoras da sociedade brasileira. Uma
igreja que busque eleger representantes para afirmar seus valores a toda a
sociedade brasileira, não é mais uma igreja, mas uma sociedade de gangsteres ou
um partido político reacionário, donde, deve deixar de ser reconhecida como
Igreja e passar a ser tratada como movimento político e social com todas as suas
implicações.
Se toleramos o aborto moral aquele
permitido quando a gestação resulta de estupro e quando toleramos o aborto
sanitário, quando a gestação traz grave risco de saúde à mulher, entendemos que
a saúde física e psíquica da mulher estão entre os direitos inalienáveis
protegidos pela Carta de 1988, principalmente em seu artigo 5o.
Importante é reforçar que não
estamos aqui defendendo o aborto ou muito menos a sua promoção, e para que se
compreenda a posição que defendemos é importante visitar a obra de Ronald
Dworkin, Domínio da Vida – Aborto,
eutanásia e liberdades individuais, onde se expressa brilhantemente:
Gostaria muito de convencer essas pessoas (defensoras da
criminalização do aborto), caso estejam dispostas a ouvir-me, de que elas compreenderam
mal o fundamento de suas próprias convicções. Ou, de qualquer modo, de que
existe um enfoque convincente da controvérsia moral que lhes permitiria
continuar a acreditar, com plena convicção, que o aborto é moralmente
condenável, mas também a acreditar, com
igual fervor, que as mulheres grávidas devem ser livres para tomar uma decisão
diferente se suas próprias convicções assim o permitirem ou exigirem. É
essa a ambição maior deste livro. (grifo nosso[1])
Compreender a gravidez como mais um
dos direitos da mulher, e defende-la como uma escolha possível, torna
incompreensível a aplicação do tipo penal aborto à interrupção voluntária da
gravidez.
Se, mesmo que de forma hipócrita,
compreendemos a pena como uma medida que busca necessariamente a proteção de
bens jurídicos universalmente entendidos como inalienáveis e a reintegração do
agente na sociedade, ao aplicarmos pena a uma mãe que interrompe
voluntariamente a gravidez, produzimos duas situações absurdas: primeiro, o
valor vida fetal para ela não tem o mesmo valor que consideramos universal.
Mais, só ela pode dimensionar o valor da vida que carrega dentro de si, sendo incompreensível
para todos os outros humanos este valor; segundo, a pena no caso do aborto não
a reintegra na sociedade, a estigmatiza, a desvaloriza e torna-a culpada de
algo brutal que a marca psicológica, moral e socialmente, tornando-se assim um
desserviço à sociedade.
Uma leitura desapaixonada e atenta
do aborto enquanto problema social no Brasil denuncia que a atual situação é
absolutamente insustentável, que a penalização da interrupção voluntária da gravidez
só se justifica pela confusão entre Estado e Igreja, e pela covardia mais
abjeta e torpe de nossos parlamentares, que deixam de cumprir com o dever de
dar à nação brasileira uma legislação que seja para todos, e não apenas para os
fundamentalistas de plantão!
[1]
DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida.
Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo, Martins Fontes,
2003. Fl. IX.
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