Infelizmente a cruzada justiceira da corregedora do CNJ,
Eliana Calmon, continua a disseminar sobre a opinião pública, em desserviço ao
Brasil, preconceitos e comportamentos que julgávamos esquecidos.
Durante o período de triste memória que conhecemos como
o Regime Militar, uma ditadura onde os valores democráticos foram espezinhados
de maneira tão violenta, tínhamos o hábito de resolver tudo no “Eu prendo e
arrebento.”
Na frase de João Batista de Oliveira Figueiredo, quando
questionado sobre a abertura, encontramos o total desrespeito pela cidadania, a
arrogância de quem sabe o que “o povo quer”, ou pelo menos, o que deveria
querer.
No dia 28 de março de 2012, na Folha de São Paulo a
corregedora do CNJ, antes mesmo da manifestação do Órgão Especial do TJ de São
Paulo, que julgará a concessão de licença a prêmio aos Desembargadores oriundos
do quinto constitucional da advocacia, manifestou-se assim: “Isso está
totalmente errado, não pode continuar”.
Se a corregedora falou como cidadã, é uma opinião, e
como tal, pode ou não ser levada em conta pelo Órgão Especial. Se falou como
corregedora do CNJ, avançou prejulgamento, ameaçou o Órgão do tribunal de
sanções, antecipando a responsabilização de seu Presidente.
É chocante verificar a falta de imparcialidade, de
decoro, de respeito para com a magistratura paulista, que tem encontrado eco
acrítico na imprensa nacional. Não é possível que a imprensa e uma corregedora
sem crítica e decoro para com a dignidade de seu cargo, pautem as decisões do
Tribunal de Justiça do Estado mais importante do país.
Não estou a entrar no mérito se a concessão da licença é
lícita ou não. Quem deve julgá-lo são os próprios juízes, já que compete a
eles, e exclusivamente a eles a prestação jurisdicional. Caso o entendimento do
Ministério Público, seja ele federal ou estadual, for que a decisão não merece
prosperar, deve ele como custus legis, recorrer da decisão, dentro dos
criteriosos e rigorosos rituais do Poder Judiciário.
A xerife do CNJ transformou-se repentinamente na
interpretação única e indiscutível de temas absolutamente conflituosos, de
temas que, por sua natureza, merecem reflexão e respeito. Como cidadão, entendo
que, se houver razões que justifiquem o pagamento da licença, se o
reconhecimento de uma carreira voltada para a prestação da justiça, para a
defesa da lei e do Estado de Direito merece tal reconhecimento, não farei
qualquer protesto, enquanto for lei.
Hoje nos revoltamos com o décimo quarto e décimo quinto salários
dos representantes do Congresso Nacional, mas, tal sinecura, só pode ser
suspensa, pelos próprios congressistas, porque representantes do povo,
expressão da vontade do povo nas urnas. Não há que se argumentar que o povo não
concorda com tais benesses, que o povo não sabe votar, que temos que proteger o
povo do seu voto, porque então, estaremos perigosa e infalivelmente, projetados
sobre o precipício do arbítrio e da ditadura.
Como disse o eminente Eduardo Couture: “Da dignidade do
juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um
momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens. No dia em
que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranquilo.”
Temo que a cruzada justiceira empreendida sem a menor
reflexão neste momento histórico, esteja a serviço de submeter ao medo a
magistratura brasileira. Hoje, tememos mais o que pode decidir uma simples
corregedora do que a decisão do presidente do TJ de São Paulo.
Durante o Império, em outros tempos da formação da
nacionalidade brasileira, os juízes muitas vezes estavam submetidos à
dependência dos políticos locais. Não havia na Carta de 1824 a garantia da
inamovibilidade e a suspensão dos juízes era possível pelo imperador. A
Constituição de 1937, aquela que nunca entrou em vigor, gestava em seu bojo o
artigo 177 que permitia toda sorte de arbitrariedades contra os juízes desde
que houvesse interesse público ou por conveniência do regime.
Foram os norte-americanos que trouxeram para o mundo do
direito a ideia da independência do Judiciário, o que permitiria o
desenvolvimento da doutrina de freios e contrapesos, doutrina esta que é hoje o
fundamento de um Estado Democrático de Direito.
As recentes manifestações da corregedora têm de ser
refutadas, para que se preserve e se defenda a independência do Judiciário,
pelo juiz, fator essencial para a preservação do Estado Democrático de Direito,
que está sempre ameaçado por interesses particulares de toda ordem, já que,
como é sabido, as instituições podem ser perfeitas, os homens não, mas a defesa
daquelas é pressuposto para a liberdade e a dignidade destes.
O CNJ é hoje um órgão administrativo que se impõe a
todas as instâncias do Judiciário, tentando impor medo e submissão aos juízes.
Não é um órgão jurisdicional, não é uma instância democrática que lhe permita
legislar. No entanto, as manifestações da corregedora têm se tornado
progressivamente mais enriquecidas de prejulgamentos, de preconceitos e de
parcialidade. Tem sobejamente dado o CNJ exemplos de “voracidade legislativa”,
uma fome de normatizar tudo, de impor regras para tudo, de tentar criar um
espaço dominado pelas certezas inafastáveis do órgão fiscalizador.
A urgente defesa da independência e da dignidade da
magistratura não se impõe apenas ao juízes, aos desembargadores aos órgãos
colegiados da magistratura. Sua defesa é uma necessidade imperativa, que se
impõe a todo cidadão, que mesmo não entendendo ou não se conformando com a
decisão que tenha em uma demanda, reconhece a dignidade daquele que a profere. Exatamente
por buscar, imparcialmente, decidir uma disputa, o juiz não tem a obrigação de
agradar quaisquer das partes, tem sim a obrigação da pacificação do conflito,
pela força do Estado, que só encontra legitimidade na força e na dignidade da
Lei.
Ferir o Judiciário é ferir a dignidade do Estado
Democrático de Direito. Disseminar o preconceito e a falsa imagem de
moralização inconsequente é abrir avenidas para a violência, é fazer com que a
crença na Lei, no Direito, se desfaça no discurso fácil.
O Brasil não precisa de Justiceiros. O Brasil precisa de
respeito e dignidade. Que valha a lei, os princípios e os valores democráticos
e constitucionais. Dura Lex, sed Lex.
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